terça-feira, junho 02, 2009

TRISTES TIGRES

No mundo fantástico que Rudyard Kipling iluminou no seu «Livro da Selva», a densa floresta das monções indianas pulula de seres maravilhosos e inquietantes: Mowgly, o menino-lobo, vivia, esquecido quase da sua condição humana, na acolhedora alcateia de Akala, rodeado ainda da amizade sincera de uma pantera negra, Báguira, e do urso Balú. Toda a história, porém, se desenrola sob a sombra poderosa do temível senhor da selva, dispondo da vida de todos, a todos abarcando com a sua tirania: Xer Kane, o tigre.
Graciosamente riscado, esplêndido de cor e de força, o grande felino alimentou sempre a imaginação dos homens. Nenhum outro animal evoca em nós a natureza selvagem da península hindustânica e o apelo forte das selvas húmidas daquela região asiática.
A verdade é que o tigre concreto e real não é um tirano, sendo certo que é poderoso. Não desempenha o papel de déspota mas o de superpredador, só temendo o Homem, causa da sua actual desgraça. O seu rugido já quase se não ouve, e os sinais da sua presença esbatem-se em todos os antigos domínios asiáticos.
O enorme gato é com efeito o maior dos felinos – maior que o leão, seu parente próximo. Muito embora associemos com facilidade o tigre às selvas e matagais indianos, a sua distribuição geográfica é bem mais extensa e variada. Existe em lugares da Sibéria gelada – onde parece estar a sua origem remota e o centro da sua difusão posterior para sul e oeste, aquando das grandes glaciações – e nas selvas indonésias de Samatra, ou ainda no sul da China, Vietname, Cambodja ,Myanmar (antiga Birmânia), Tailândia, entre outros países da chamada Indochina. Mas os tigres, já viveram na actual Turquia, Afeganistão e Irão e a sua área de distribuição russo/siberiana foi antigamente muito mais larga
Deste «império» asiático resultaram diferentes sub-espécies de Phantera tigris, oito para ser exacto, das quais hoje restam apenas cinco. Há muito que não há notícias do tigre do Cáspio, que vivia em quase toda a Ásia Central e, ao que parece, subsistia ainda nos anos 70, algures nas montanhas iranianas. Já não resta também nenhum tigre do Bali, extinto nos anos 40, e o tigre de Java -a sub-espécie mais pequena – parecer ter desaparecido há poucos anos (anos 80?).
O que resta são cerca de 5000 tigres (estimativa optimista para alguns) no total mundial. Nos idos de 1900, eram talvez 100.000! A maioria serão tigres de Bangala, os mais conhecidos e tipicamente indianos. Mas algumas centenas (400?) de tigres da Sibéria, o mais claro e corpulento de todos estes felinos, vão resistindo nas suas florestas e o tigre da Indochina, antes tão difundido, não conta mais de 1500 efectivos.
A raça de Sumatra, com cerca de 500 tigres recenseados, pode bem vir a sofrer o destino das outras raças indonésias (Java e Bali) tendo em conta o declínio verificado, mas o tigre do sul da China é o mais triste candidato à extinção: são não mais de 20 os sobreviventes. Tigre de Sumatra


O REI NO EXÍLIO

O que pode ter causado um tão dramático extermínio de uma espécie cuja capacidade de adaptação é reconhecida, bastando verificar a extrema variedade de habitats ocupados, com climas, tipos de coberto vegetal e de presas e condições ecológicas gerais tão diversas?
Se o rugido de Xer Kane já não faz tremer os seres da selva profunda, e mesmo a alcateia que acolhe Mowgly já não ouve o gato temível nas noites de luar, o que se terá passado? Em toda a parte, a pressão humana fez recuar a natureza e, em particular, os grandes predadores. O avanço da agricultura e a explosão demográfica verificada na Ásia meridional não podia deixar de causar problemas à presença do tigre. O derrube de árvores e o incêndio das planícies de ervas altas, a destruição dos pântanos e a invasão das montanhas recobertas de vegetação representam o fim anunciado das criaturas que aí vivem. O tigre não pode viver sem o seu meio natural, sem as presas que lhe fornecem alimento. Lá onde os homens incendeiam e arroteiam a selva, para aumento dos pastos, os olhos dos felinos espreitam, escondidos, o seu drama inelutável. Há poucos anos, um jornal indiano titulava: «Mil milhões de pessoas contra quatro mil tigres?», e ali se ilustrava o drama de hoje. O tigre era ocasionalmente abatido, desde sempre. Mas a chegada dos europeus inverteu os dados da questão – o predador indiscutível era agora peça de caça. Dignitários britânicos e marajás, do alto dos seus elefantes amestrados, descarregaram sem cessar as espingardas contra o antes tão temido rei da selva.
Crónicas do início do Séc. XX registaram essas caçadas, por vezes verdadeiros massacres.
Na Índia, a independência como Estado apenas democratizou as caçadas. Anulando as reservas de caça dos marajás, empurraram-se ainda mais os tigres (e a restante fauna) para as regiões mais recônditas. A destruição dos habitats, num país com necessidades tão prementes de desenvolvimento, fez o resto e continua hoje a fazê-lo – apesar das leis promulgadas e de um apreciável esforço na criação de grandes reservas naturais.
Muito ao norte, na Rússia, a sorte dos imensos tigres «brancos» e peludos não foi melhor – e a confusão político/social dos últimos anos não ajudou, com as vastas florestas siberianas ameaçadas por companhias madeireiras e máfias locais.

NOVAS E ESTRANHAS AMEAÇAS

Acrescendo a tudo isto, um outro perigo de morte paira sobre os tigres, onde quer que se encontrem: depois do comércio das peles (hoje severamente restringido por leis internacionais), é a procura de órgãos de tigre para a medicina tradicional chinesa uma das motivações mais fortes para os caçadores furtivos. Por estranho que possa parecer, os órgãos sexuais dos tigres são considerados, em algumas regiões asiáticas, um afrodisíaco poderoso, como tal servidos numa bizarra sopa, muito apreciada. Os ossos destes felinos «curam» convulsões e anemias e as costelas do animal são valiosos amuletos, favorecendo a boa sorte e afugentando maus espíritos. O rabo, uma vez moído, passa por suavizar ferimentos e doenças de pele e até os olhos do tigre são considerados um bálsamo para maleitas várias.
Toda esta (infelizmente para os utentes, completamente ilusória) panóplia de superstições, significa, nos dias que correm, um perigo mortal – mais um! – para o futuro de uma espécie cuja grandeza e função nos ecossistemas a diriam fadada para ignorar tão mesquinhas procuras. Só que os tempos mudaram – e o desafio (válido aliás para toda a biodiversidade) é agora encontrar fórmulas que possam conciliar homens e tigres, o mesmo dizer, valorizar antes o tigre vivo em detrimento do tigre morto. Preservar a vida selvagem, para mais em países pobres – onde as populações aspiram legitimamente a uma melhor condição de vida –, será mostrar a eficácia da natureza como valor económico, não apenas turístico mas científico e em termos de identidade cultural dos povos. Isto foi compreendido em alguns estados da Índia, onde esforços titânicos – lutando com uma falta de meios desmotivadora – têm sido realizados nesse sentido. Sem que se ganhem as populações, as reservas naturais, por maiores que sejam, cercadas de milhares de camponeses pobres e sedentos de terras, serão paulatinamente invadidas e retalhadas. Aí, o tigre passará de senhor da selva a intruso e indesejado competidor, para agricultores e criadores de gado.
Essa sensibilização das populações para o valor da conservação da natureza não pode excluir uma acção fiscalizadora inflexível e bem equipada – os pobres guardas das reservas não podem, muitas vezes, competir com os sofisticados equipamentos dos caçadores furtivos!

O ESPÍRITO DA SELVA

O tigre é um predador eclético, capaz de capturar presas que vão do búfalo até ao roedor. Consoante a região que habita, escolhe presas, que na Sibéria podem ser corços e veados, na Índia bois selvagens e cervos-axis, em ambos os lugares, javalis, uma caça muito apreciada pelos tigres (dando, por vezes, lugar a renhidos combates).
Ao contrário do leão (que já foi frequente no continente asiático e ainda hoje existe na Índia), não caça em grupo, preferindo métodos solitários de abordagem. Outra diferença entre os dois maiores felinos é o habitat preferido: o leão gosta dos espaços abertos, mas o tigre opta por florestas com clareiras, zonas de matagal alto e mesmo selva densa.
Não se encontram, porém, tigres muito longe da água, sendo rara a sua presença em territórios muito secos. Denotando talvez a remota origem nórdica, adoram banhar-se quando o calor aperta, e evitam as altas temperaturas iniciando as suas actividades ao fim do dia (sendo que não é exclusivamente nocturno, excepto se for muito perseguido)
Os tigres evitam o Homem e não o enfrentam, se puderem. Mas – e seria impossível não abordar o assunto – não se pode negar que alguns indivíduos se «especializaram» no ataque a seres humanos. È conhecido o caso de um tigre (na Índia, região de Suderbans) que apanhou e matou centenas de pessoas. Esses casos, verdadeiramente excepcionais, parecem provir de exemplares doente ou feridos, impossibilitados de alguma forma de caçarem as presas habituais. De qualquer forma, a existência de cada vez mais pessoas no território de tigres, (animais fortemente territoriais) levanta problemas de segurança que não podem ser ignorados, mesmo se a regra é, sem dúvida, o receio atávico do grande felino em relação ao seu pior inimigo.
Salvar o tigre é um imperativo moral, ecológico, e científico. Será também um sinal brilhante para a salvaguarda de toda a natureza selvagem – mesmo aquela cuja existência pode conflituar com certas actividades humanas.
As vantagens serão inúmeras, certamente, para os povos que estimarem um património tão rico em beleza e grandeza.
Xer Kane continuará, para o bem e para o mal, a ser o próprio espírito da selva profunda.
Bernardino Guimarães
(Este texto é de 2002 e foi publicado em Outubro desse ano na revista «Tribuna da Natureza»)

Tigre do Cáspio ( extinto)

1 comentário:

  1. Excelente trabalho .
    Gosto quando referes:
    "A verdade é que o tigre concreto e real não é um tirano, sendo certo que é poderoso. Não desempenha o papel de déspota mas o de superpredador, só temendo o Homem, causa da sua actual desgraça."

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