sábado, julho 18, 2009

O VERÃO E A CIDADE

Abandonada por muitos, estivalmente posta em sossego, liberta de pressas e angústias competitivas, a cidade parece outra. Brilham sobre ela os níveis extremos de raios UV, dourado sobre azul, ligeira névoa matinal tocando o grande espelho do rio e a fímbria do mar. O vento ausenta-se, mesmo as araucárias não balançam. O calor combate-se nas esplanadas, bravamente, serenamente.
Mas o cidadão fica, entre pachorrento e aliviado, nessa solidão que a falta de barulho habitual torna quase visível, a cismar. Nas alterações climáticas, certamente, que o jornal falou nisso ontem e o vizinho dissertou sobre o assunto. «Isto anda tudo trocado, meu amigo! Ninguém me tira que desde que os foguetões foram à lua…hum…» e com essa expressão de intriga e cepticismo encerrou a sua deixa.
Depois são os fogos florestais…felizmente que o Julho fresco afastou de nós, para já, o pior do flagelo, mas não faltam no telejornal imagens da Croácia e da Grécia, tão semelhantes!
A Imprensa fala de coisas leves e engraçadas, que se cruzam nas páginas com os dramas estivais. O resto são crimes passionais, entrevistas sobre depilação instantânea, concentrações de motards, vendas de jogadores e pura hipocondria sugerida e enaltecida nos magazines televisivos. Os teóricos e os gurus da vida saudável fazem proselitismo e arrastam multidões, com os seus ditames assertivos e vagamente esotéricos. Até os frenéticos e incansáveis blogues foram de férias, mais as suas assanhadas polémicas, descontando os que ainda debitam na areia cibernéticas sentenças sobre este mundo…e o outro.
Que resta ao cidadão que resiste na cidade? A paisagem, caros leitores, mil vezes a paisagem local, descoberta como se fosse a primeira vez, cheia de luz e de ingleses, revelada nos miradouros, descida nas ruas que vão ao rio como afluentes de pedra escura, oculta nas grandes festas que celebram o Estio e o Sol, ou no plano mais chão, a francesinha e a cerveja. Fica sempre essa cidade para vermos, ninguém nos tira essa sensação de sermos os únicos no terreno, para lá dos que precisam de mapa e de guia nativo.
E o verde (não falo do vinho, mas se calhar devia) porque temos felizmente o Parque da Cidade e mais vale atravessa-lo a pé, espiar os cisnes aristocráticos pairando nos lagos e visitar o núcleo rural, antes que outros atravessamentos saiam da cabeça fértil e original dos nossos urbanistas. Como é Verão, não faz sentido escrever sobre uma estrada ou linha-férrea pujante e animadora cruzando, entre viadutos, a calma do Parque. Esse sinal de progresso tão comovente entrará melhor noutras épocas do ano, como tema de conversa.
O cidadão pedestre, isolado do resto da sua espécie sem sair da cidade, pode ainda usar o Verão para ver melhor as árvores da sua cidade. Monumentos vivos, algumas. Passemos porém ao largo das que adornam a chamada Avenida da AEP, promovida a auto-estrada, porque os plátanos aí têm morte anunciada. Mais vale ir procurar sombra a outras paragens, se tal coisa houver! Também o Instituto das Estradas de Portugal vela pelo nosso progresso…
Assim reconfortado, o teimoso resistente pode descobrir a cidade, e até a Natureza que nela é resistente por definição. E aproveitar a quietude enquanto pode, que vem por aí a rentrée e a vida voltará ao que era. Nem melhor nem pior, igual.
Sem estação própria ficará sempre a insatisfação, humana por excelência, e talvez, para alguns, a necessidade de sonhar uma cidade mais agradável para viver todo o ano. Esta crónica não consegue evitar a referência «ao que podia ser» a urbe. Força do hábito de não desistir— ou efeito do calor?
Bernardino Guimarães
Foto de Raízes.e.Asas
(Crónica escrita—e publicada no JN—subitamente no Verão passado.)

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