sexta-feira, abril 09, 2010

É PRIMAVERA!


Nesta estação do ano, é mais fácil pensarmos no que nos rodeia, na Natureza certamente, mas em geral no que vemos, no que nos é exterior e no entanto tão agradavelmente familiar. Porque vemos e sentimos mais. Como se a luz, tocada por impulso universal de generosidade, e distribuída ao longo do dia, revelasse o que nunca devemos perder de vista— com novas cores que nos dão lições de pintura, perspectivas e distâncias, acendendo em todos uma renovada aprendizagem. Luzes, brilhos, colorações e matizes deslizando ao sabor das horas, formas que clareiam, vultos, e novas sombras fruto da luz.
A Primavera! Não se trata de um momento de abstracção, mas tempo para os sentidos todos. É uma escolha. Se escolhermos reparar, dar conta do que se passa em volta, seremos abalroados pelos barulhos insanos da cidade, mas haverá tempo e ouvidos para o canto do melro, flauteado alto, ondulação criativa musical do cimo da magnólia. O vulto negro na frescura da manhã, apesar dos claxons e dos motores, mesmo que sejam raros os recantos onde floresce a magnólia e reina ainda o melro altivo. Mesmo que os nossos ouvidos e olhos já não estejam habituados aos sinais do mundo vivo.
De resto, é nesta altura do ano que penso naquilo que se perde, que todos perdemos, com a inexorável expulsão da natureza das cidades e até do mundo rural. Os nossos olhos e ouvidos, o nosso olfacto e tacto deixaram de presenciar a sucessão de acontecimentos que marcavam as estações do ano e davam— por assim dizer— algum sentido ao tempo. Se vivemos longe da Natureza e dela temos apenas uma ideia (o que chocaria o poeta Alberto Caeiro, seguramente) ainda por cima ideia filtrada pelas noções comuns, crescentemente banalizadas e abstractas, claro que se empobrece o nosso campo de visão, e mingua o tempo que temos para o deslumbramento, o mistério, a descoberta pessoal, única e intransmissível.
Dizer que existem «selvas de betão» -por vezes bem mais duras do que as selvas reais que vemos nos filmes) não é desvalorizar as cidades, essa maximamente humana criação e nossa marca distintiva como espécie. Mas porquê obedecer mecanicamente ao discurso do «progresso» que glorifica a cidade como contrário da Natureza e pior, como expressão de uma dominação tirânica do Homo sapiens sapiens sobre toda a restante Criação?
Reconciliar Cidade e Natureza, ou mais precisamente Cultura e Natureza, esse é que é o repto.
Ou estaremos condenados a este vazio dos sentidos (compensados por uma estimulação mediática ou química extraordinária) a este muro de barulho que é muro da solidão? O canto do melro torna-se assim elemento subversivo, porque é pormenor, apontamento de beleza e de liberdade onde os urbanistas e os empreiteiros/políticos não o tinham previsto. Despertando-nos, canto levemente metálico, eco de luz da manhã, para o que pode ser o significado da Primavera.
Em vez de quintas virtuais podemos exigir Natureza que se ouça e veja e cheire, e na cidade dos homens queremos também terra, Terra planeta sim, mas mais que tudo, terra que as mãos revolvam e toquem.
Bernardino Guimarães
(Crónica para a Antena 1, «Um Olhar sobre a Cidade», 8/4/010)

3 comentários:

  1. Queremos sim, Bernardino, queremos terra para tocar e revolver, queremos os melros e as magnólias, queremos as estações do ano na pele, queremos os mistérios da natureza e da vida, e ser abalroados pela beleza avassaladora da nossa Mãe Terra... mas ainda não o sabemos.. .

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  2. Ainda consigo ouvir o canto do melro, aui na minha casa. Parabéns pelo texto.

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  3. Ou estaremos condenados a este vazio dos sentidos (compensados por uma estimulação mediática ou química extraordinária) a este muro de barulho que é muro da solidão?

    Sim, cada vez nos isolamos mais ,ficamos horas sem fim , em frente ao computador ...no virtual...e a realidade foge!
    Cá fora... tudo é belo,durante todo o ano!

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