terça-feira, julho 20, 2010

AVE


Uma ave atravessa a alameda, voo ágil, soltando um grito abafado. Cor de areia, cauda comprida, penas rémiges escuras e um colar estreito, circulando incompletamente o pescoço. Uma rola-turca, pude perceber, «Streptopelia decaocto» de seu nome científico. Pousou com delicadeza no cimo de um candeeiro de rua. Do alto da luminária, fitou-me e a quem me acompanhava naquela tarde de luz dourada e quente, enquanto arrulhava, a espaços, « um arrulhar agudo e trissilábico» como se diz do seu canto na literatura ornitológica.
A ave parecia feliz e interessada. A sua silhueta, maior do que a da sua prima, a rola-brava, chama a atenção e é aos pares que as vemos geralmente, pousadas em postes telefónicos, ramos de árvores e muros altos.
Naquela tarde estival, a rola rematou um percurso de paisagem, de ruas, de Douro, de mar, e foi como o apontamento que faltava. A Natureza é afinal, aquilo que acontece? A vida na cidade inclui estas outras vidas, outras espécies, que voluntariamente a nós se chegam, à nossa beira, nas nossas urbes sem silêncio e sem descanso.
Às elegantes rolas, pelo menos, ninguém lhes virá chamar «pragas». Talvez as gaivotas-douradas, arrogantes e belas, sejam mais facilmente candidatas a esse labéu pouco invejável, fazendo companhia aos roedores e aos pombos das cidades, pobres deles, considerados excessivos em número e em descaramento.
Biodiversidade urbana—conceito que só agora vai ganhando « foros de cidade.»
Se a mesma cidade entra pelo campo dentro e o ocupa e devora, algumas espécies animais e vegetais resistem, na ( para eles) nova selva de cimento e vidro, enquanto podem e não são expulsos!
A raposa e a gineta, predadores nocturnos, o ouriço-cacheiro e a águia-de-asa-redonda ainda por lá ficam, cautelosas, nessas ruralidades devastadas e suburbanas até à medula; não são mitos urbanos—mas fantasmas resilientes e ocultos.
Outro caso é o das espécies que, adaptáveis e flexíveis, por sua própria vontade e misterioso impulso, escolhem viver na cidade histórica e não apenas nos arrabaldes. A nossa graciosa e tímida rola-turca faz parte dessa fascinante « guarda avançada».
Antes da década de 1930, esta ave só ocorria nos Balcãs, na Turquia e em extensões asiáticas mais a sudeste. Alguma razão compeliu estas rolas ( que são sedentárias, não efectuando emigração anual) a uma pacífica e discreta invasão da Europa Ocidental.
A Portugal chegaram cerca dos anos 70 pela primeira vez, notoriamente na cidade do Porto, conforme assinalou o distinto ornitólogo Santos Júnior.
Que grande, enorme, maravilhosa odisseia as fez mudar de pátria, viagem exploratória, conquista de espaço distante, vida nova, que sabemos nós?
Uma gesta ignorada, portanto.
Devia ser disso que a rolinha, suavemente pousada no candeeiro, nos queria falar, se falasse, ou arrulhar, como fez, naquela tarde algo mágica, de luz dourada tão quente.
Bernardino Guimarães
( Crónica para a Antena 1, em 8/7/010)

1 comentário:

  1. Pousou com delicadeza no cimo de um candeeiro de rua

    Com a mesma delicadeza que falta a muitos seres humanos!
    Linda crónica!

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