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segunda-feira, setembro 20, 2010

OUTONO

De que lado viste chegar
o outono? Por que janela
o deixaste entrar? És tu quem
canta em surdina, ou a luz
espessa das suas folhas?
Em que rio te despes para sonhar?
É comigo que voltas
a ter quinze anos e corres
contra o vento até te perderes
na curva da estrada?
A quem dás a mão e confias
um segredo? Diz-me,
diz-me, para que possa habitar
um a um os meus dias.

                           Eugénio de Andrade

quarta-feira, maio 26, 2010

SOBRE A PALAVRA

Entre a folha branca e o gume do olhar

a boca envelhece

Sobre a palavra

a noite aproxima-se da chama


Assim se morre dizias tu

Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio

a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente



                        Eugénio de Andrade, in "Véspera da Água"

domingo, janeiro 10, 2010

O INVERNO

Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.

Vem de sobretudo,
Vem de cachecol,
O chão onde passa
Parece um lençol.

Esqueceu as luvas
Perto do fogão:
Quando as procurou,
Roubara-as um cão.

Com medo do frio
Encosta-se a nós:
Dai-lhe café quente
Senão perde a voz.

Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.


Eugénio de Andrade
In "Aquela Nuvem e Outras"

sexta-feira, janeiro 01, 2010

OS AMANTES SEM DINHEIRO

Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
E frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
De mãos dadas com a água
E um anjo por irmão.
Tinham como toda a gente
O milagre de cada dia
Escorrendo pelos telhados,
E olhos de oiro
Onde ardiam
Os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
E silêncio
À roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
Um pássaro nascia dos seus dedos
E deslumbrado penetrava nos espaços.


Eugénio de Andrade, Antologia Breve

quarta-feira, dezembro 30, 2009

PASSAMOS PELAS COISAS SEM AS VER

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, maio 08, 2009

QUE FIZESTE DAS PALVRAS

Que fizeste das palavras
que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás
Ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

Eugénio de Andrade

terça-feira, março 17, 2009


FRÉSIAS

Uma pátria tem algum sentido
quando é a boca
que nos beija a falar dela.
A trazer as suas sílabas
o trigo, as cigarras,
a vibração
da alma ou do corpo ou do ar,
ou a luz que irrompe pela casa
com as frésias
e torna, amigo, o coração tão leve.

Eugénio de Andrade