terça-feira, outubro 27, 2009

CIRCO

Gosto do circo. E gosto de animais. Mas não gosto de circo por causa dos animais. Nem dos animais por causa do circo.
O grande espectáculo circense, as suas luzes, o seu mundo de audácia e maravilha, de magia e de coragem, sempre fascinou os que apreciam ver, vivido e real, aquilo que transcende o «normal», o «possível». E o circo é arte do impossível. A ilusão, o risco, o encantamento, o heroísmo, está tudo lá, nas tendas que albergam sonhos e onde tudo se recria perante os nossos olhares espantados.
Sempre pensei que os animais selvagens estavam a mais nesse universo fantástico. Porque a presença desses seres aí resulta na sua diminuição. Amestrados, acorrentados, fazendo mimos forçados a custo sabe-se lá de que sofrimentos e canseiras, os pobres animais tornam-se em amarga caricatura de si próprios. Enquanto no circo o Homem se eleva à esfera do impossível, o animal selvagem perde a sua magia primordial, como que se reduz e rebaixa num desgraçado papel meio cómico, meios trágico.
O tigre majestoso e superlativamente belo, o urso inteligente e formidável, volvem-se em criaturas assustadas, servis, torturadas, apresentando momices à força de medo e de rotina.
Retirando de cena os animais selvagens, o circo ganha em consciência e em coerência. E brilhará mais alto ainda, sem sofrimento nem desrespeito.
Até porque todos fomos tendo notícia dos maus tratos infligidos a animais selvagens em (alguns) circos portugueses, e de condições de vida degradantes que não enaltecem esses circos ou quem os dirige. O circo em círculo, prisioneiro dos seus maus hábitos?
Pretender que a lei agora publicada—e que de resto se refere à posse e reprodução de espécies selvagens detidas por entidades privadas e não visa especificamente os circos—é um atentado à velha arte circense, é no fundo admitir que esta forma de espectáculo ainda se baseia, remotamente, em resquícios do que foram os combates de gladiadores, ou entre feras e feras, e homens e feras, que faziam as delícias sanguinárias da populaça aglomerada nos coliseus romanos e outros da Antiguidade.
O mundo mudou, como mudou a própria lógica, função e condições dos parques zoológicos e afins, por exemplo, que deixaram de ser meros recintos de exibição avulsa e aparatosa de animais selvagens para integrarem algum projecto educativo e cultural, de divulgação científica e preferencialmente de ajuda à conservação de espécies muito ameaçadas nos seus habitats de origem.
E essa razão também pesa: que sentido tem a aquisição de espécies tão próximas da extinção como o tigre, unicamente para fins de duvidoso entretenimento?
Continua a ser grande a tentação de exibir, ampliada e pungente, a razão e racionalidade humana dobrando e ridicularizando, na sua vitória equívoca, a natureza selvagem; mas hoje sabemos mais e podemos ver mais longe.
Entendemos, ou devíamos entender, a nossa comum pertença e proximidade à Natureza e suas criaturas— com as quais partilhamos a presença na Terra e o milagre da vida. E daí deve partir o respeito devido aos seres vivos todos, se usarmos o nosso dom da consciência para agir com mais compreensão e alguma humildade enquanto espécie.
O resto, meus amigos…é circo!
Bernardino Guimarães
(Crónica emitida pela Antena 1 a 22/10/09)

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