Há vinte anos, um crime espantou e comoveu o Brasil e o Mundo. Um crime político, sem dúvida, chamando a atenção para a violência e agudeza dos confrontos que envolve uma das regiões mais faladas do mundo, a Amazónia.
No dia 22 de Dezembro de 1988, à porta de sua casa, caiu, mortalmente baleado, o sindicalista e activista ambiental Chico Mendes. Tinha 44 anos de idade.
Figura carismática, homem do povo que enaltecia as suas origens humildes de seringueiro, Chico pagou caro um trajecto de denúncia e de acção de muitos anos em favor dos «povos da floresta» do seu estado natal do Acre e de toda a região amazónica.
Talvez ninguém tenha aliado, de forma tão criativa e audível, o sindicalismo que denuncia a injustiça social e o activismo que combate a destruição deste «pulmão da Terra». É que, para Chico Mendes, as duas coisas estavam, e estão, indissociavelmente ligadas: os povos que vivem da floresta, os extractivistas da borracha, os indígenas, os pescadores, precisam da grande floresta para sobreviverem. A destruição do fabuloso ecossistema das selvas húmidas significa o fim do seu modo de vida. Mas outros interesses, poderosos e gozando de cumplicidades extensas, não pensam o mesmo. Fazendeiros e madeireiros queriam outro uso para aquelas terras— implicando a anulação do modo de vida dos povos tradicionais e a destruição da floresta. Mesmo que isso implique a violência e a coacção.
A luta de Chico Mendes assentou na procura de união dos povos da floresta.
Secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Acre, dinamizou as manifestações pacíficas que mobilizaram milhares na década de setenta, avultando os célebres «empates», quando os seringueiros protegiam as árvores da floresta com os seus próprios corpos. Foi também a época de acções, com grande impacto nacional mas vigiadas de perto pela ditadura militar brasileira de então, visando reivindicar a posse das terras pelos seus habitantes tradicionais, os seringueiros e outros povos que há muito ali viviam e trabalhavam.
Em 1985, durante o Conselho Nacional de Seringueiros, Chico faz a sua proposta de uma «União dos Povos da Floresta», juntando na mesma jornada extractivistas da borracha, índios, «castanheiros», pequenos pescadores, quebradeiras de babaçu e populações ribeirinhas, em torno de um programa comum e realista. A ideia era a criação de «reservas extractivistas», que sobre a tutela federal, garantiriam a preservação das áreas indígenas e da floresta, ao mesmo tempo que seriam parte da reclamada «reforma agrária» na região.
Em 1987, este homem, que tinha aprendido a ler aos 20 anos de idade porque em Xapuri, sua cidade natal, não havia escola, sofrido de uma série de perseguições que fazendeiros e políticos lhe moveram, chegando a tentar envolvê-lo num caso de homicídio, do qual foi inteiramente ilibado depois, recebeu altos funcionários das Nações Unidas e membros do Senado norte-americano. Mostrou-lhes a impressionante devastação da floresta, a acção mortífera do fogo e dos machados, e o povo que sofria com o sofrimento da floresta. Mais ainda, fez-lhes ver que algumas dessas acções só eram possíveis porque havia financiamentos de bancos internacionais e até de agências da ONU para os projectos de desenvolvimento que implicavam a devastação. A persistência de Chico Mendes fez com que alguns desses financiamentos fossem suspensos.
Toda esta actividade do líder sindical, se merecia crescente reconhecimento e obtinha visibilidade no Brasil e internacionalmente, convocava o ódio vesgo de alguns poderosos, de uma complicada teia local e federal.
O seu assassinato resultou daí. Algum tempo após o crime, a Justiça condenou dois fazendeiros como mandantes, a 19 anos de prisão. Um dos criminosos fugiu da cadeia pouco tempo depois, vindo a refugiar-se no interior do Pará, chegando mesmo a obter financiamento público do Banco da Amazónia para um projecto. Recapturado, está hoje em prisão domiciliária.
A borracha está muito ligada ao desenvolvimento da economia brasileira e a alguns dos seus maiores períodos de expansão esteve na origem do crescimento de cidades como Manaus, Porto Velho e Belém, respectivamente nos estados do Amazonas, Rondônia e Pará.
Foi na floresta amazónica que se expandiu esta prática, que consiste em extrair do caule de uma árvore (a Seringa ou Seringueira-- Havea brasilensis) um líquido branco chamado latéx.
A decadência económica desta actividade esteve na origem do surgimento de ideias bem menos sustentáveis para a região— a agricultura intensiva, a criação de gado, o corte de madeiras— todas implicando, mais ou menos, a morte da floresta, e dos seringueiros.
Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, deixou um legado reconhecível. A sua ideia central de conciliar a prosperidade dos povos pobres da floresta e a preservação dos ecossistemas pode considerar-se pioneira.
Do activismo de Chico e dos seus companheiros, ficou a criação de muitas «reservas extractivistas», Unidades de Conservação que hoje são 45 e abrangem uns 9 milhões de hectares amazónicos, abrigando mais de 40 000 pessoas. Permitem, como sonhou o sindicalista da floresta, a manutenção da actividade económica tradicional, organizada em cooperativas e associações, e a conservação dos recursos naturais, resolvendo ao mesmo tempo o velho problema da posse da terra.
Se Chico Mendes não foi o primeiro mártir da defesa da Amazónia, não foi infelizmente o último. Bastará referir o caso da missionária Dorothy Stang, assassinada em 2005 em Anapu, no estado do Pará. O mandante foi um grande fazendeiro local e os motivos semelhantes.
Mas a defesa das «florestas de chuva» é de facto inseparável da defesa dos povos que ali tem a sua morada desde há muito. O desfecho continua a ser muito incerto, porque a desflorestação avança tragicamente.
Mas a luta pela preservação da Natureza pode e deve ser aliada da justiça social e do desenvolvimento equilibrado, a pensar no futuro. E de uma democracia presente nos confins da selva tropical.
Esta noção talvez seja mesmo o maior legado que deixou Chico Mendes!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Obrigada, pela mensagem que deixaste passar fazendo referência a Chico Mendes, que infelizmente muita gente não conhece, nem nunca ouviu falar.....conseguiste sensibilizar-me, oxalá que muitos como eu leiam este texto com a devida atenção quie ele merece...
ResponderEliminarParabéns
Eu é que agradeço! E o Chico Mendes merece mesmo ser lembrado como exemplo!
ResponderEliminarE nos deixou não só este legado mas também a sua Pupila, Eloísa Helena, que este ano concorre a presdência do Brasil.E espero que realmente ganhe e, que não acorra com ela o mesmo que ocorreu com Chico, Dorothy e tantos outros(as).
ResponderEliminarSem dúvida um excelente artigo!!!
ResponderEliminar