Muito dos que adquiriram, desde cedo, a paixão pela natureza selvagem, pelas vastas extensões bravias cheias de mistério e fascínio e habitadas por uma fauna extraordinária, devem esse encontro a um homem: Félix Rodriguez de La Fuente, o prestigiado naturalista espanhol, talentoso divulgador.
A consciência dessa dívida pode ser, como é natural, maior ou menor. Mas, para aqueles que leram, com avidez, os monumentais volumes de “A Fauna” ou foram espectadores atentos dos seus programas de televisão, dificilmente restarão dúvidas: Félix foi o seu mentor, mesmo distante, abrindo em espíritos jovens, as sendas de um mundo apaixonante. O nosso mundo afinal, ainda quando não nos esforçamos por conhecê-lo melhor.
Félix La Fuente conseguiu, com inegável mestria, unir o conhecimento rigoroso e esforçado da natureza, adquirido no terreno, com a arte de tornar esse conhecimento popular e acessível, através dos meios de comunicação.
Fê-lo, ademais, numa época em que pouco se falava de ecologia, de biodiversidade, e de outros termos científicos hoje perfeitamente vulgarizados. Uma geração inteira de naturalistas e defensores da natureza teve neste espanhol multifacetado um inspirador nunca esquecido.
A fauna ibérica, em particular, entrou-nos definitivamente no coração. E quem diria que também aqui, nas velhas paisagens da Península, viviam seres com o carisma do lobo, a discrição do lince, o voo impressionante da águia-real? Revelar, mostrar a espanhóis e portugueses a riqueza e o esplendor do seu imenso património natural, não foi certamente a menor tarefa que cumpriu, ao longo de uma vida cheia, Félix Rodrigez de La Fuente.
Os seus documentários televisivos, cheios de acção e dramatismo, beleza e inesperado, os seus escritos, onde uma bela prosa transmitia saber e complexidade de maneira simples e escorreita, tudo isso marcou uma época e cativou milhares de pessoas para a necessidade de preservar as belezas naturais, afinal tão ameaçadas e frágeis quanto são parte integrante da nossa vida e da nossa própria existência humana. A começar pelo que existe quase aqui ao pé da porta sem que por vezes o saibamos.
Lince-ibérico
Uma paixão precoce
…”oh, lejana y agreste naturaleza de los dias de mi infancia!: naturaleza viva, palpitante; comprendida e amada por quien hace treinta años iniciaba um camino que le há proporcionado las más emocionantes aventuras e frescas alegrias”…
Félix Rodriguez de La Fuente nasceu na localidade de Poza da la Sal (Burgos) a 14 de Março de 1928. A sua atracção pela natureza parece remontar à infância, e as primeiras incursões pelas cercanias da sua terra natal acontecem muito cedo, deixando fortes impressões na memória do futuro naturalista.
O seu pai, que era notário local, não acreditava na escolarização desde os primeiros anos da infância, pelo que ingressou no ensino já com 8 anos, coincidindo essa etapa com o início da guerra civil espanhola. Esse triste facto histórico, significou para o pequeno Félix, mais algum tempo de liberdade que o encerramento da escola lhe proporcionou. Nunca lhe foi negada nem a afeição aos passeios ao ar livre, nem as visitas às paisagens agrestes que começavam já a interessar-lhe.
Regressado aos estudos. – e demonstrando grande capacidade de recuperação do atraso inicial -, manifestou interesse pela zoologia mas o pai, prudentemente, sempre o aconselhou a cursar algo mais sólido e estável, que lhe permitisse ganhar a vida sem sobressaltos. Algo contrariado. Félix seguiu o conselho paterno e, terminado o curso secundário, foi para Valladolid estudar medicina – apesar de tudo, a carreira “segura”mais próxima da biologia.
Os seus anos de estudante universitário passou-os aplicando-se nas matérias o suficiente para tirar excelentes notas, mas gastando todo o tempo livre em saídas de campo para observação dos animais selvagens – data desse tempo o seu interesse pelos falcões. O grande zoólogo e ecólogo espanhol José António Valverde (que veio a ser um dos promotores do Parque Nacional de Doñana) e que ao tempo vivia em Vallodolid, exerceu grande influência sobre o estudante de medicina.
Concluído o curso, resolveu prosseguir a especialização odontológica, talvez uma vez mais por pressão do pai, mas conseguindo notas brilhantes e obtendo mesmo um prémio de pós-graduação.
Só que a profissão de dentista não o podia realizar inteiramente. Trabalhou algum tempo numa clínica especializada, mas após a morte do pai, Félix de La Fuente decidiu dedicar-se por inteiro à sua verdadeira vocação – o estudo dos animais.
O interesse pelos falcões marcou a carreira de Félix desde o seu início. O estudo, em plena natureza, destas belas aves de rapina levou-o a aprofundar também conhecimentos sobre a velha arte da falcoaria ou cetraria, com firmadas tradições em Espanha. Consultou para tal livros medievais e aprendeu com velhos mestres desta prática que consiste no adestramento dos falcões para a caça. Alcançou tal nível nesta arte, com os seus falcões de várias espécies, que foi convidado para trabalhar no Serviço Nacional de Caça e Pesca com a função de animar uma estação dedicada ao estudo e conservação dos falcões.
Aqui abrem-se parêntesis para uma polémica: certos conservacionistas acusaram, algumas vezes, Feliz Rodriguex de La Fuente de fomentar e divulgar a cetraria, o que implicava naturalmente a captura de exemplares na natureza para o adestramento. Seja qual for a opinião que se tenha sobre o assunto, convirá que se diga que foi o naturalista espanhol o responsável pelo alerta lançado para a necessidade de proteger todas as aves de rapina – e fê-lo com eficácia, numa Espanha (como Portugal) onde, até aos anos 70 pelo menos, nenhuma destas espécies fugia à classificação de “daninha” e “nociva” podendo ser envenenada à vontade!
Bufo-real
Divulgador incansável
A vida de Felix Rodriguez de La Fuente não se resumiu apenas ao estudo dos animais – os falcões, os lobos (outra paixão permanente), a águia-real ou o lince, sobre os quais escreveu como ninguém. O seu interesse por toda a fauna era patente e compreendeu, talvez com mais agudeza do que a maioria dos seus contemporâneos, que era imprescindível dar a conhecer a natureza ao grande público, se de facto se pretendia preserva-la na sua enorme diversidade, implicando a boa utilização dos “media”.
Félix torna-se o divulgador mais talentoso e mediático da fauna selvagem ibérica (e, posteriormente, de todo o mundo) marcando com essa acção persistente milhares de pessoas. As suas incursões nas serranias e nos bosques em breve iria ser, invariavelmente, acompanhadas pela maquinaria necessária para filmar e fotografar, o que exigia bons colaboradores, ideias precisas…e uma infinita paciência e gosto pelo risco.
A sua primeira aparição na televisão espanhola, em 1965, com os seus falcões e as suas descrições vibrante e inteligentes, impressionou logo o público – e mudou a vida de Félix. Desde aí, o seu trabalho identificou-se com uma série de programas televisivos, cada vez melhores e, finalmente, excepcionais. Das suas primeiras séries, como “Imagens Para Saber”, passando por “Fauna”, “Vida Selvagem” e “Planeta Azul”, culminando com “O Homem e a Terra” (com três séries: sul-americana, ibérica e canadiana) o estilo do divulgador foi-se apurando, até que o domínio das técnicas específicas de comunicação exigidas o guindou, certamente, à categoria de um dos maiores autores de programas de televisão espanhóis. Sem qualquer dúvida, aquele que melhor utilizou o “media” televisivo para dar conta da beleza, da emoção, do trágico que atravessa a existência dos seres vivos no seu “habitat” natural.
Da actividade incrível de Félix Rodriguez de La Fuente, um incansável trabalhador, e da sua equipa jovem e entusiasta, há ainda que não esquecer os livros publicados, e as colecções em fascículos que, traduzidas em 12 línguas (caso da enciclopédia “Salvat de la Fauna”) popularizaram também o seu autor e levaram, a tantas pessoas em todo o mundo, o prazer de seguir, pela palavra escrita e pela imagem, o pulsar de uma natureza que não conhece fronteiras… mas oculta segredos fascinantes.
Programas de rádio, artigos de imprensa, conferências, preencheram igualmente um curriculum notável e quase inigualável. Félix La Fuente, pelo seu dom de cativar, pela sua figura carismática, pela força de convicção que sempre mostrou, ocupou um lugar eminente nas fileiras daqueles que cedo clamaram contra a insensata e trágica destruição da natureza, regredindo em todo o lado num caminho acelerado para o abismo. Mesmo que o homem possa sobreviver a um tal processo de aniquilação ecológica, a vida humana reconduzir-se-á a um cenário desolado e estéril, indigno de ser vivido. O destino da fauna e da flora acompanha assim o nosso – e só uma tomada de consciência eficaz poderá inverter a tendência para o empobrecimento planetário.
Viajante experimentado, Félix Rodriguez de La Fuente morre em 1980, aos 52 anos, num desastre em que se despenhou a avioneta a partir da qual filmava uma fileira de cães esquimós, no Alaska. O seu desaparecimento deixou um vazio, porventura não preenchido até hoje. A sua obra recorda-nos uma vida cumprida em plenitude e um exemplo que marcou muitos de nós, ajudando a revelar um mundo cuja beleza por vezes esquecemos e cuja integridade deveremos preservar para o futuro, com os seres que connosco habitam a precária e intrigante aventura da vida.
Bernardino Guimarães
(uma singela homenagem do Peregrino ao ilustre naturalista e publicista espanhol. Publicado originalmente na revista «Tribuna da Natureza», numero 10, Primavera de 2002.)
segunda-feira, março 30, 2009
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Ainda hoje passados umas décadas recordo com saudade os seus programas que nos entretinham e aprendíamos sobre a fauna e flora da Península Ibérica. Bem aja Felix la Fuente.
ResponderEliminar"Félix La Fuente conseguiu, com inegável mestria, unir o conhecimento rigoroso e esforçado da natureza, adquirido no terreno, com a arte de tornar esse conhecimento popular e acessível, através dos meios de comunicação.
ResponderEliminarFê-lo, ademais, numa época em que pouco se falava de ecologia, de biodiversidade, e de outros termos científicos hoje perfeitamente vulgarizados. Uma geração inteira de naturalistas e defensores da natureza teve neste espanhol multifacetado um inspirador nunca esquecido."
Belo texto ,Felix la Fuente bem o merece.