1) — Cedo pela manhã, liga-se a televisão. Do mundo, as novidades? O que nos assalta e prende são as imagens/vídeo da Via de Cintura Interna— ou então do IC19 – informação útil, ameaçadoras imagens. Relatório visual do que afinal, nos espera daqui a minutos. Comentários formais e indiferentes dos apresentadores. No écran vê-se tudo: chove, céu pedrento, azul-cinza, nuvens sujas. Vias congestionadas, evidência de trombose circulatória, rodoviária. Parece estar frio, na atmosfera algo hostil insinua-se, eminente, nas artérias da metrópole, o AVC da VCI.
Sinais que mudam de cor, mas nada mexe. Um filme parado, mudo, a preto e branco. Há pessoas dentro dos automóveis, dos camiões, e talvez relógios nervosos dentro das pessoas. Inicio o «zapping» sem ilusões mas volto ás imagens do trânsito. Marcha lenta.
Não fosse de manhã e eu certamente filosofaria. Ansiedade.
As matinais cenas televisivas das estradas que deixam entrar e sair da urbe (e o que há para além dela?) são reality-shows de vanguarda, com excelente share de resto, um pouco banalizadas — mas fascinantes. Nunca perco. A mobilidade toda imobilizada, a lentidão urbana-depressiva, o tempo contado, cortado, todo um retrato de época. Narrativa suspensa e emocionante.
São já nove da manhã. Que se há-se fazer? A rodovia está, sob o nosso olhar espectador estremunhado, a ser vítima do seu próprio sucesso. As vias de cintura, os itinerários complementares, (há poesia nestas designações!) as solenes rotundas, as auto-estradas elas mesmas— deixaram, a espaços, de ser navegáveis. O Douro não sei, não transmitiram imagens.
Se a VCI enfim descongela e tudo anda (vê-se na TV, claramente!) e a coisa começa a desanuviar, tudo parece readquirir o seu sentido primordial. Não se pode jurar, mas porventura alguma esperança ressurge, tímida, em milhares de corações apressados. O pior já lá vai, talvez se chegue a tempo, o céu reazula-se, reacende-se de repente, púrpura. A cidade mexe, toda, como que vasos comunicantes— sem flores, que essas ficaram nas janelas, paradas— transmitem energia vital e a seiva percorre de novo o corpo urbano. Um bocadinho de imaginação e veríamos entradas velozes em parques de estacionamento, túneis e tubos, quem sabe bolsas de valores com homens agitados, saltando, vibrando ao som das apostas no que sobe e no que desce, casino febril e hiper-realista— bancos e lojas abrindo-se. Mas enfim, os automobilistas devem precaver-se ainda do piso húmido, do piso térreo.
As imagens agora podem mostrar o Iraque. Desamanhece, tudo se encontra nos seus lugares.
Saio para a rua, feliz da vida.
2) — Não sei se a cidade— qualquer cidade— pode ter de si mesma, através do nosso olhar, uma ideia inspirada em semelhantes conturbações matinais. Nem o olhar do telespectador procura, nas imagens do tráfego, mais do que a informação suficiente para decidir o seu trajecto. Mas, ironia amarga à parte, se virmos certos dias urbanos, certas manhãs ou certas tardes, relembramos— basta um pouco de atenção— o quanto o cenário se vai tornando pesado, impraticável, violento. A chamada mobilidade, fotografada na apoplexia (esta crónica descaiu um bocadinho para a hipocondria, desculpem lá!) é apenas um dos factores que nos limitam e empobrecem.
Precisa-se de cirurgia urbana reconstrutiva, de novos factores que permitam circular, ver, viver— trazer a natureza para que ajude a cidade a ser humana.
Os automóveis engarrafados, o ar contaminado, são a metáfora do esgotamento de uma certa ideia de cidade e de sociedade.
Tudo está em saber, se somos capazes de criar outras palavras – outras imagens para os dias que nascem.
Bernardino Guimarães
em JN 24/01/06
segunda-feira, março 16, 2009
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O meu comentário vai-se ficar por dizer que de forma alguma a crónica "descaiu para a hipocondria". Longe disso, o cronista descreveu com exactidão, o encontro matinal de milhões de seres humanos à face da Terra com cidades cujas rotinas são ainda mais pedrentas e escuras que a aparência do céu em dia de intempérie. Gostaria que fossemos capazes de criar outras vidas, para assim descrevermos outras imagens para os amanheceres, em que a proximidade do Homem à Natureza não se ficasse pelo vaso esquecido e imóvel à janela, e tão distante da natureza das metrópoles actuais.
ResponderEliminar"Não se pode jurar, mas porventura alguma esperança ressurge, tímida, em milhares de corações apressados. O pior já lá vai, talvez se chegue a tempo, o céu reazula-se, reacende-se de repente, púrpura. A cidade mexe, toda, como que vasos comunicantes— sem flores, que essas ficaram nas janelas, paradas— transmitem energia vital e a seiva percorre de novo o corpo urbano."
ResponderEliminarAssim o espero...que o pior já la vai e que ainda chegue a tempo.