Poucos fenómenos do mundo natural nos fascinam como as migrações das aves. Cruzando continentes, misturando a nossos olhos biologia e geografia, estes seres alados dão-nos a ideia nítida de como a vida ultrapassa até as longas distâncias que perfazem o nosso planeta azul, relativizando-as, ao mesmo tempo que as engrandecem. Asas pelos ares, sobrevoando tudo, planadoras ou de voo frenético, pelo breu da noite como sob os raios dourados do meio-dia, que misteriosa força os impele? Que vontade indómita e ancestral lhes dá a força do voo e a precisão da rota? Desde sempre este interesse humano se manifestou. E conclusões também foram surgindo ao longo das eras. Da má ciência à boa poesia. Da experiência metódica às fábulas encantadoras, de tudo houve e há.
Nem só as aves migram. Sabemos que muitas espécies de mamíferos o fazem sazonalmente (as renas e os lemingues no Árctico, os gnus e outros ungulados na África oriental, os cetáceos nos oceanos, etc) e que numerosos peixes efectuam migrações excepcionalmente longas e complexas, caso do salmão-atlântico, e o mesmo fazem as tartarugas-marinhas ao logo de milhares de quilómetros nos oceanos..
As aves, não obstante, encheram sempre a imaginação dos homens. No Hemisfério Norte, o ruidoso início das suas deslocações prenunciava o final de uma estação do ano. Poderiam as aves anunciar o futuro? E, já que desaparecem de vista durante parte do ano, para onde irão? Aristóteles dedicou-se a este tema. Aquele grande espírito colocou a hipótese de algumas aves mudarem de forma, transformando-se noutra espécie. Assim estaria explicado o “desaparecimento”. O rabirruivo tornar-se-ia pisco no Inverno, o cuco passaria a ser gavião e por aí fora.
Para muitos naturalistas antigos as aves partiriam para a Lua, seu destino invernal. Ainda perto de 1820, havia quem defendesse que as andorinhas hibernavam… dentro dos lagos!
Muitos anos haviam de passar até que a ornitologia sistemática conquistasse avanços. A anilhagem em massa tornou possível obter dados fiáveis sobre os destinos de cada espécie. A acumulação de informação foi desvendando muitos aspectos – mas outros permaneceram, e permanecem, incompletamente explicados.
Como se orientam as aves durante as migrações? O que faz com que identifiquem, ano após ano, os seu locais de criação e de invernada? O seu impulso deve-se à aprendizagem ou é inato e deve ser procurado nos genes?
Desde os anos 40, experiências orientadas por G. Kramer provaram claramente que muitas aves de migração se orientam pelo sol. Colocando aves em migração numa gaiola especial, (“a gaiola de Kramer”) e por meio de espelhos, foi modificada a direcção aparente da luz solar, o que provocou imediatas alterações nas suas posições, de acordo com as respectivas rotas migratórias.
Uma outra experiência, posterior, revelou sem margem para dúvidas a importância das estrelas na orientação das aves migradoras nocturnas. Certas aves, num planetário dos EUA, quando postas perante um céu de Outono norte-americano (onde nidificam) logo tomavam a direcção do norte (1).
Também o campo magnético terrestre parece representar algum papel no sentido de orientação das aves. Há referências a trabalhos de investigação concludentes, como se os pássaros possuíssem uma espécie de bússola e fosse a própria Terra um gigantesco íman. Onde se situa essa “bússola”, isso não é ainda certo. Sabe-se que determinadas glândulas originam alterações no organismo das aves, preparando-as para o momento das viagens – em particular a hipófise – que, ao detectar a variação de horas-luz, desencadeia todo um processo que culmina no início da viagem migratória.
As aves têm no horizonte visual um elemento para identificar as suas rotas – mas, como é óbvio, a identificação de acidentes orográficos como ponto de referência não explicará o sentido de orientação infalível de juvenis que fazem tal percurso pela primeira vez.
Por outro lado, na geração do instinto migrador há-de haver algo de inato, visto que só isso pode explicar o caso do cuco-canoro (Cuculus canoros) que, criado por outra espécie e por tal razão desprovido de exemplo, efectua, chegando o momento, as mesmas viagens dos seus congéneres! Algo de “socialmente adquirido” também: cegonhas-brancas deslocadas para outras populações com outras rotas para África, cedo se adaptaram ao caminho das suas novas companhias. Uma mistura complexa de factores interagindo, portanto. E muito ainda para a ciência desvendar.
É provável que, nas eras mais remotas do Planeta Terra, se tivessem criado as condições que geraram a necessidade e (a capacidade) das migrações.
Deve haver aves migratórias pelo menos desde o período glaciário (era Quaternária) ou mesmo muitíssimo antes (Terciário?). Foram talvez os gelos que obrigaram muitas aves a deslocarem-se, procurando sobreviver.
O recuo do frio teria depois motivado um lento regresso das espécies, dando início, a hábitos migratórios regulares.
Na verdade, não é tanto o frio mas a carência de alimentos que motiva as migrações. Uma ave do hemisfério norte pode encontrar lagos gelados, a terra coberta pela neve espessa e, pior que tudo, ausência de invertebrados. Ao rumar a sul, procura condições de subsistência. Mas algo a obriga a voltar ao ponto de partida quando “pressente a chamada”. O quê exactamente? È certo que as regiões do hemisfério sul não são nenhum paraíso, já que inúmeras espécies autóctones não deixam de oferecer concorrência tenaz às invasoras do norte. Mas algo mais impele ao regresso, porventura as condições óptimas de reprodução.
Nem só as grandes viajantes intercontinentais ganham direito ao título de “migradoras”. Existem aves que apenas efectuam, ciclicamente, pequenas ou médias deslocações. Outras espécies – aves de rapina – “migram” descendo de patamar montanhoso, ou deslocam-se alguns quilómetros “para baixo” nas grandes cordilheiras. Há ainda migradores parciais – espécies de aves com populações migradoras e populações sedentárias. É o caso da águia-pesqueira (Pandion haliaetus) que é migradora na Europa do norte e sedentária, ou divagante, no Mediterrâneo.
Migram de noite pequenos passeriformes, e de um modo geral todos os insectívoros (se bem que as andorinhas e andorinhões o façam de dia) em parte para evitar predadores e devido ao seu regime alimentar.
Durante o dia, vêem-se aves viageiras tão carismáticas como o grou, as cegonhas, algumas rapinas como falcões, abutre-do-egipto, falcão-abelheiro, águia-cobreira.
De dia e de noite, consoante as espécies e as circunstâncias, os anatídeos, como os gansos e os patos.
As planadoras (cegonhas, águias) aproveitam as correntes de ar quente ascendente para pairar – o que implica evitar as grandes massas de água. Daí o atravessamento (maravilhoso espectáculo, diga-se de passagem) de pontos com a mínima distância entre terra e terra, como Gibraltar ou o Bósforo.
As aves marinhas, como os albatrozes e os petréis, ganham velocidade e deixam-se depois elevar pelas correntes de altitude antes de descerem outra vez.
A altitude do voo migratório varia muito. Um pequeno número viaja muito alto, até 1.500 metros, por vezes 3.000 metros de altura, (os gansos-selvagens estão entre os campeões de altitude) e mesmo bastante mais. A maioria das espécies, porém, prefere altitudes médias mais moderadas (uns 750 metros).
A velocidade é igualmente muito diversa, variando, segundo algumas experiências, ente 40 e mais de 300 Km/h, consoante as espécies!
Rotas extraordinárias
O mundo é cruzado por milhões de aves migratórias, em todas as direcções. Variam as espécies, o tamanho, o tipo de voo, diurno ou nocturno, a altitude de voo, as rotas (por terra ou por mar), a duração e distância percorrida durante as viagens. Constante é a admiração que estas largas odisseias nos suscitam.
Nem só as aves migram. Sabemos que muitas espécies de mamíferos o fazem sazonalmente (as renas e os lemingues no Árctico, os gnus e outros ungulados na África oriental, os cetáceos nos oceanos, etc) e que numerosos peixes efectuam migrações excepcionalmente longas e complexas, caso do salmão-atlântico, e o mesmo fazem as tartarugas-marinhas ao logo de milhares de quilómetros nos oceanos..
As aves, não obstante, encheram sempre a imaginação dos homens. No Hemisfério Norte, o ruidoso início das suas deslocações prenunciava o final de uma estação do ano. Poderiam as aves anunciar o futuro? E, já que desaparecem de vista durante parte do ano, para onde irão? Aristóteles dedicou-se a este tema. Aquele grande espírito colocou a hipótese de algumas aves mudarem de forma, transformando-se noutra espécie. Assim estaria explicado o “desaparecimento”. O rabirruivo tornar-se-ia pisco no Inverno, o cuco passaria a ser gavião e por aí fora.
Para muitos naturalistas antigos as aves partiriam para a Lua, seu destino invernal. Ainda perto de 1820, havia quem defendesse que as andorinhas hibernavam… dentro dos lagos!
Muitos anos haviam de passar até que a ornitologia sistemática conquistasse avanços. A anilhagem em massa tornou possível obter dados fiáveis sobre os destinos de cada espécie. A acumulação de informação foi desvendando muitos aspectos – mas outros permaneceram, e permanecem, incompletamente explicados.
Como se orientam as aves durante as migrações? O que faz com que identifiquem, ano após ano, os seu locais de criação e de invernada? O seu impulso deve-se à aprendizagem ou é inato e deve ser procurado nos genes?
Desde os anos 40, experiências orientadas por G. Kramer provaram claramente que muitas aves de migração se orientam pelo sol. Colocando aves em migração numa gaiola especial, (“a gaiola de Kramer”) e por meio de espelhos, foi modificada a direcção aparente da luz solar, o que provocou imediatas alterações nas suas posições, de acordo com as respectivas rotas migratórias.
Uma outra experiência, posterior, revelou sem margem para dúvidas a importância das estrelas na orientação das aves migradoras nocturnas. Certas aves, num planetário dos EUA, quando postas perante um céu de Outono norte-americano (onde nidificam) logo tomavam a direcção do norte (1).
Também o campo magnético terrestre parece representar algum papel no sentido de orientação das aves. Há referências a trabalhos de investigação concludentes, como se os pássaros possuíssem uma espécie de bússola e fosse a própria Terra um gigantesco íman. Onde se situa essa “bússola”, isso não é ainda certo. Sabe-se que determinadas glândulas originam alterações no organismo das aves, preparando-as para o momento das viagens – em particular a hipófise – que, ao detectar a variação de horas-luz, desencadeia todo um processo que culmina no início da viagem migratória.
As aves têm no horizonte visual um elemento para identificar as suas rotas – mas, como é óbvio, a identificação de acidentes orográficos como ponto de referência não explicará o sentido de orientação infalível de juvenis que fazem tal percurso pela primeira vez.
Por outro lado, na geração do instinto migrador há-de haver algo de inato, visto que só isso pode explicar o caso do cuco-canoro (Cuculus canoros) que, criado por outra espécie e por tal razão desprovido de exemplo, efectua, chegando o momento, as mesmas viagens dos seus congéneres! Algo de “socialmente adquirido” também: cegonhas-brancas deslocadas para outras populações com outras rotas para África, cedo se adaptaram ao caminho das suas novas companhias. Uma mistura complexa de factores interagindo, portanto. E muito ainda para a ciência desvendar.
É provável que, nas eras mais remotas do Planeta Terra, se tivessem criado as condições que geraram a necessidade e (a capacidade) das migrações.
Deve haver aves migratórias pelo menos desde o período glaciário (era Quaternária) ou mesmo muitíssimo antes (Terciário?). Foram talvez os gelos que obrigaram muitas aves a deslocarem-se, procurando sobreviver.
O recuo do frio teria depois motivado um lento regresso das espécies, dando início, a hábitos migratórios regulares.
Na verdade, não é tanto o frio mas a carência de alimentos que motiva as migrações. Uma ave do hemisfério norte pode encontrar lagos gelados, a terra coberta pela neve espessa e, pior que tudo, ausência de invertebrados. Ao rumar a sul, procura condições de subsistência. Mas algo a obriga a voltar ao ponto de partida quando “pressente a chamada”. O quê exactamente? È certo que as regiões do hemisfério sul não são nenhum paraíso, já que inúmeras espécies autóctones não deixam de oferecer concorrência tenaz às invasoras do norte. Mas algo mais impele ao regresso, porventura as condições óptimas de reprodução.
Nem só as grandes viajantes intercontinentais ganham direito ao título de “migradoras”. Existem aves que apenas efectuam, ciclicamente, pequenas ou médias deslocações. Outras espécies – aves de rapina – “migram” descendo de patamar montanhoso, ou deslocam-se alguns quilómetros “para baixo” nas grandes cordilheiras. Há ainda migradores parciais – espécies de aves com populações migradoras e populações sedentárias. É o caso da águia-pesqueira (Pandion haliaetus) que é migradora na Europa do norte e sedentária, ou divagante, no Mediterrâneo.
Migram de noite pequenos passeriformes, e de um modo geral todos os insectívoros (se bem que as andorinhas e andorinhões o façam de dia) em parte para evitar predadores e devido ao seu regime alimentar.
Durante o dia, vêem-se aves viageiras tão carismáticas como o grou, as cegonhas, algumas rapinas como falcões, abutre-do-egipto, falcão-abelheiro, águia-cobreira.
De dia e de noite, consoante as espécies e as circunstâncias, os anatídeos, como os gansos e os patos.
As planadoras (cegonhas, águias) aproveitam as correntes de ar quente ascendente para pairar – o que implica evitar as grandes massas de água. Daí o atravessamento (maravilhoso espectáculo, diga-se de passagem) de pontos com a mínima distância entre terra e terra, como Gibraltar ou o Bósforo.
As aves marinhas, como os albatrozes e os petréis, ganham velocidade e deixam-se depois elevar pelas correntes de altitude antes de descerem outra vez.
A altitude do voo migratório varia muito. Um pequeno número viaja muito alto, até 1.500 metros, por vezes 3.000 metros de altura, (os gansos-selvagens estão entre os campeões de altitude) e mesmo bastante mais. A maioria das espécies, porém, prefere altitudes médias mais moderadas (uns 750 metros).
A velocidade é igualmente muito diversa, variando, segundo algumas experiências, ente 40 e mais de 300 Km/h, consoante as espécies!
Rotas extraordinárias
O mundo é cruzado por milhões de aves migratórias, em todas as direcções. Variam as espécies, o tamanho, o tipo de voo, diurno ou nocturno, a altitude de voo, as rotas (por terra ou por mar), a duração e distância percorrida durante as viagens. Constante é a admiração que estas largas odisseias nos suscitam.
Certas aves percorrem quase o planeta inteiro, outras são mais modestas nas suas deslocações mas atravessam obstáculos terríveis – oceanos, cadeias montanhosas, desertos.
Alguns exemplos: a andorinha-do-mar- árctica (Sterna paradisaea) – que também aparece nas costas portuguesas -, com os seus 38 cm de comprimento, é uma das campeãs de voo de longo curso. As andorinhas-do-mar que nidificam no Atlântico Norte migram ao longo das costas europeias e americanas, até às partes mais meridionais da África e da América do Sul chegando até junto ao pólo sul! As populações orientais desta espécie (Rússia, Sibéria) migram no mesmo sentido até à Austrália, percorrendo cerca de 22.500 quilómetros! De pólo a pólo duas vezes por ano, são quase sete meses em viagem!
O voo do Árctico até às regiões tropicais é realizado por numerosas espécies, como certos gansos-selvagens e muitas limícolas. A tarambola-dourada (Pluvialis apricaria) ostenta o recorde de voo sem escala. Vence, de uma só vez, a distância que medeia entre o Alasca e as ilhas Haway em 35 horas, à média de 90 km /h.
Por vezes, as rotas obedecem nitidamente à vontade de evitar caminhos mais curtos que, porém, levariam a ave a atravessar obstáculos muitíssimos perigosos. Assim, uma toutinegra nascida na Suiça chega ao Zaire depois de percorrer meia-Europa até ganhar Gibraltar, subtraindo-se à travessia de longas extensões marítimas. Depois segue por sobre o oeste africano, sobre a floresta tropical, evitando as extensões desérticas tanto quanto possível.
Nestas coisas de migrações, tamanho não é documento, o colibri-de-pescoço-vermelho pesa 3 gramas e é chamado a “ave-mosca” (na realidade uma das mais pequenas aves do mundo) mas efectua milhares de quilómetros. Antes de partir, engorda bastante (até 6 gramas) para assegurar as indispensáveis reservas. Nidifica no leste dos Estados Unidos, e no Québec, e migra em Agosto e Setembro para o México e Panamá! Este feito notável é realizado com até 80 batimentos de asa por segundo – invisível ao olho humano – e o seu minúsculo coração bate 1440 vezes por minuto!
Em contrapartida, aves enormes como o Pelicano-branco (Pelecanus onocrotalus), com até 3,50 metros de envergadura, deixam os seus locais de criação na Grécia ou no Delta do Danúbio, rumo à África central, todos os anos por volta de Setembro, para regressarem na Primavera!
De certas aves do alto-mar dir-se-ia que procuram o mínimo contacto possível com a terra. Uma espécie de albatroz (Diomedia exalans), um gigante com 3,6 metros de envergadura, passa cerca de 90% da sua vida sobre os mares. Deixa o ninho aos 9 meses e só regressa a terra com sete anos de idade para se reproduzir. Pode fazer várias voltas ao mundo entre duas épocas de reprodução, nas ilhas geladas do Antárctico – conforme foi comprovado através de rastreio por satélite.
O hoje quase extinto maçarico – de-bico-fino (Numenius tenuirostris) nidifica nas estepes inundadas do oeste da Sibéria e passa o Inverno em zonas húmidas de Marrocos. Este padrão não é inabitual. Outras aves, porém, dão-nos ainda maiores lições de geografia: o chasco-cinzento (Oenanthe oenanthe) nidifica ao longo de uma vasta distribuição geográfica, que inclui quase toda a Europa e Ásia e boa parte da América do Norte. Todos estes chascos invernam na África subsaariana. Para as populações deste pequeno pássaro (do tamanho do pardal) que vivem no Canadá, a odisseia é impressionante: atravessam o estreito de Bering cruzando todo o espaço siberiano/russo até dobrarem para sul, por volta do mar Aral, atravessando o Médio Oriente, provavelmente pelo Suez, e penetram em África até às regiões do centro e sul!
Mas bastar-nos-ia contemplar os grous que, pousando nos montados alentejanos, completam a viagem desde o norte da Polónia; ou os bandos de tordos, talvez descansando nos nossos olivais da aventura que os trouxe da Finlândia ou das Ilhas Britânicas. Ou ainda o voo fugaz de uma rola-comum que atravessa os campos ibéricos vinda de algum recanto francês ou alemão para ainda rumar até África – fazendo aqui curta escala. Todos estes seres testemunham a mesma misteriosa e frenética aventura.
Perigo!
Duas vezes por ano, as legiões migradoras cruzam os céus. São milhares, milhões, incontáveis quase. Sobrevoando desertos com milhares de quilómetros, braços de mar, sistemas montanhosos, todos os obstáculos devem ser vencidos. Mas, quer se trate das grandes migradoras, cegonhas, anatídeos, grous, aves de rapina, ou minúsculas felosas, delgadas andorinhas e alvéolas, todas pagarão um grande e pesado tributo. Uma boa parte das viajantes não sobrevivem aos perigos da sua fantástica epopeia.
Não sabemos qual será a percentagem das vítimas, caídas sobre o mar ou numa duna do deserto abrasador, vencidas pela exaustão, perdidas num turbilhão de ventos contrários, confundidas na rota por fenómenos meteorológicos tão diversos como inesperados.
Outras ameaças se perfilam: quando o exército multiforme dos passeriformes europeus atravessa o Mediterrâneo, por exemplo, cá estarão à sua espera, os falcões-de-Eleanor (Falco eleanorae) que capturarão milhares deles, e mais uma panóplia de predadores farão o mesmo. Será uma rude prova a ultrapassar, antes que o voo dos pequenos pássaros, numa rota sem escala possível, os leve a sobrevoar as quentes areias do Saara, onde o calor extremo e – terrível tormenta! – as tempestades de areia, podem significar a morte para milhões delas. Calculou-se que 2 em 5 andorinhas morrem em pleno deserto antes de poderem chegar às latitudes africanas meridionais tão desejadas, ou durante a viagem inversa até às terras da Europa onde nasceram!
A verdade é que, para além de tudo isto (e não é pouco) as aves enfrentam outras armadilhas letais – as representadas pelo Homem e seus hábitos e artefactos.
Antes de mais, a caça. Na sua viagem norte-sul, muitas espécies são simplesmente massacradas, apesar das leis que procuram minorar os efeitos arrasadores da actividade cinegética nas populações migratórias.
Se teoricamente o grou, a cegonha e outras espécies protegidas poderão voar descansadas (na Europa, porque ao chegar a África já a situação é bem diferente) para os anatídeos, as rolas, os pombos-torcazes e os tordos, entre muitos outros, a travessia das orlas mediterrâneas significa uma dura provação. Milhões de rolas e pombos são abatidos por caçadores espanhóis e franceses aquando da travessia dos Pirinéus. Os patos dificilmente encontram sossego nas zonas húmidas onde pretendem invernar, exceptuando certas reservas naturais. O relatório oficial da época de caça 1998-99, em França, esclarece: 1.126.000 patos abatidos legalmente, o que exclui caça furtiva, aves feridas ou desaparecidas, etc!
A chacina outonal dos tordos, em Portugal inclusive, é particularmente revoltante: mal refeitos de uma jornada exaustiva que os trouxe da Escandinávia e Inglaterra (onde a lei os protege!), os pássaros são dizimados sem descanso e sem moderação. São, diz-se, as vítimas de não haver caça de maiores dimensões… e as espingardas recusam calar-se!
Em Malta, ilha estratégica para a travessia mediterrânea de numerosas espécies, a “tradição local” é a hecatombe de tudo o que voe – a tiro, com armadilhas, tudo pode ser morto ou capturado e o tráfico engorda fortunas. Rapinas como a águia-pesqueira, o falcão-abelheiro e os peneireiros têm neste país a causa do “desaparecimento” das suas populações nórdicas e da Europa central.
Juntemos a esta tragédia os obstáculos que por toda a parte a mão humana semeia: redes nos campos, vedações cinegéticas e outras, aerogeradores, edifícios envidraçados (que nos EUA, se calcula sejam responsáveis por milhões de óbitos entre aves migradoras), toda uma parafernália que inclui ainda as linhas de alta tensão atravessando os campos.
A destruição dos lagos, pântanos e outras zonas húmidas, a ocupação turístico/urbana de pontos cruciais ao longo do litoral, a rarefacção dos bosques e sebes vivas, a contaminação das águas e de toda a cadeia alimentar por poluição vária, (insecticidas, etc) – eis mais alguns elementos de perigo.
A poluição dos meios aquáticos pode constituir um grave problema para as aves. Todos os anos os anatídeos são envenenados ao engolirem os pequenos grãos de chumbo que os caçadores depositam nas zonas húmidas ou nos campos. E os grandes acidentes também acontecem: o Parque Nacional de Doñana, no sul de Espanha, foi atingido pela ruptura de uma imensa lagoa de retenção de águas contaminadas com metais pesados, há dois anos. Que se saiba, 5000 gansos-selvagens não regressaram à Escandinávia natal, só no primeiro ano após o desastre.
O fenómeno das alterações climáticas traz consigo outras provações para as aves viajantes— na verdade para toda a biodiversidade. Efeitos importantes foram já detectados e descritos, sendo de prever que algumas espécies não lograrão adaptar-se às consequências do aquecimento global, demasiado rápidas para que mudanças de hábitos milenares surtam efeito em tempo útil. A instabilidade no ciclo hidrológico, a escassez de alimento, o desencontro entre épocas de migração e a disponibilidade alimentar a escassez de zonas húmidas devido a secas prolongadas podem ditar o destino trágico de muitas aves migradoras.
Preocupante é a quebra populacional alarmante das chamadas «aves comuns» --uma parte das quais são migradoras— que ninguém esperaria ver ameaçadas tal a sua aparente abundância passada e que não beneficiam sequer do estatuto oficial de «em vias de extinção». Mudanças súbitas na industrialização e intensificação da agricultura, urbanização de espaços rurais e disseminação de poluentes na cadeia alimentar são factores que concorrem para o gradual desaparecimento de aves que coexistiam com o Homem há muitos séculos num contexto de ruralidade que o «progresso» --ou o que passa com esse nome— degradou profundamente.
S.O.S. pelas aves migradoras? Se nada for feito, à escala local e nacional mas também internacional, as milenares rotas das grandes viajantes poderão ser só um sonho passado, na perspectiva das próximas gerações!
Num planeta doente e desencantado, restaria aos Homens, por exemplo, a leitura da fantástica obra da escritora sueca Selma Lagerlöff – “ A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia” – a bela odisseia dos gansos-selvagens. Ou quem sabe, recuar à Antiguidade e perder-se na Ilíada, onde Homero refere “como se eleva até aos céus a voz clamorosa do povo dos Grous, quando, fugindo das geadas e das torrentes dos céus, atravessam com grandes gritos o impetuoso oceano e levam a destruição e a morte à raça dos pigmeus”.
Alguns exemplos: a andorinha-do-mar- árctica (Sterna paradisaea) – que também aparece nas costas portuguesas -, com os seus 38 cm de comprimento, é uma das campeãs de voo de longo curso. As andorinhas-do-mar que nidificam no Atlântico Norte migram ao longo das costas europeias e americanas, até às partes mais meridionais da África e da América do Sul chegando até junto ao pólo sul! As populações orientais desta espécie (Rússia, Sibéria) migram no mesmo sentido até à Austrália, percorrendo cerca de 22.500 quilómetros! De pólo a pólo duas vezes por ano, são quase sete meses em viagem!
O voo do Árctico até às regiões tropicais é realizado por numerosas espécies, como certos gansos-selvagens e muitas limícolas. A tarambola-dourada (Pluvialis apricaria) ostenta o recorde de voo sem escala. Vence, de uma só vez, a distância que medeia entre o Alasca e as ilhas Haway em 35 horas, à média de 90 km /h.
Por vezes, as rotas obedecem nitidamente à vontade de evitar caminhos mais curtos que, porém, levariam a ave a atravessar obstáculos muitíssimos perigosos. Assim, uma toutinegra nascida na Suiça chega ao Zaire depois de percorrer meia-Europa até ganhar Gibraltar, subtraindo-se à travessia de longas extensões marítimas. Depois segue por sobre o oeste africano, sobre a floresta tropical, evitando as extensões desérticas tanto quanto possível.
Nestas coisas de migrações, tamanho não é documento, o colibri-de-pescoço-vermelho pesa 3 gramas e é chamado a “ave-mosca” (na realidade uma das mais pequenas aves do mundo) mas efectua milhares de quilómetros. Antes de partir, engorda bastante (até 6 gramas) para assegurar as indispensáveis reservas. Nidifica no leste dos Estados Unidos, e no Québec, e migra em Agosto e Setembro para o México e Panamá! Este feito notável é realizado com até 80 batimentos de asa por segundo – invisível ao olho humano – e o seu minúsculo coração bate 1440 vezes por minuto!
Em contrapartida, aves enormes como o Pelicano-branco (Pelecanus onocrotalus), com até 3,50 metros de envergadura, deixam os seus locais de criação na Grécia ou no Delta do Danúbio, rumo à África central, todos os anos por volta de Setembro, para regressarem na Primavera!
De certas aves do alto-mar dir-se-ia que procuram o mínimo contacto possível com a terra. Uma espécie de albatroz (Diomedia exalans), um gigante com 3,6 metros de envergadura, passa cerca de 90% da sua vida sobre os mares. Deixa o ninho aos 9 meses e só regressa a terra com sete anos de idade para se reproduzir. Pode fazer várias voltas ao mundo entre duas épocas de reprodução, nas ilhas geladas do Antárctico – conforme foi comprovado através de rastreio por satélite.
O hoje quase extinto maçarico – de-bico-fino (Numenius tenuirostris) nidifica nas estepes inundadas do oeste da Sibéria e passa o Inverno em zonas húmidas de Marrocos. Este padrão não é inabitual. Outras aves, porém, dão-nos ainda maiores lições de geografia: o chasco-cinzento (Oenanthe oenanthe) nidifica ao longo de uma vasta distribuição geográfica, que inclui quase toda a Europa e Ásia e boa parte da América do Norte. Todos estes chascos invernam na África subsaariana. Para as populações deste pequeno pássaro (do tamanho do pardal) que vivem no Canadá, a odisseia é impressionante: atravessam o estreito de Bering cruzando todo o espaço siberiano/russo até dobrarem para sul, por volta do mar Aral, atravessando o Médio Oriente, provavelmente pelo Suez, e penetram em África até às regiões do centro e sul!
Mas bastar-nos-ia contemplar os grous que, pousando nos montados alentejanos, completam a viagem desde o norte da Polónia; ou os bandos de tordos, talvez descansando nos nossos olivais da aventura que os trouxe da Finlândia ou das Ilhas Britânicas. Ou ainda o voo fugaz de uma rola-comum que atravessa os campos ibéricos vinda de algum recanto francês ou alemão para ainda rumar até África – fazendo aqui curta escala. Todos estes seres testemunham a mesma misteriosa e frenética aventura.
Perigo!
Duas vezes por ano, as legiões migradoras cruzam os céus. São milhares, milhões, incontáveis quase. Sobrevoando desertos com milhares de quilómetros, braços de mar, sistemas montanhosos, todos os obstáculos devem ser vencidos. Mas, quer se trate das grandes migradoras, cegonhas, anatídeos, grous, aves de rapina, ou minúsculas felosas, delgadas andorinhas e alvéolas, todas pagarão um grande e pesado tributo. Uma boa parte das viajantes não sobrevivem aos perigos da sua fantástica epopeia.
Não sabemos qual será a percentagem das vítimas, caídas sobre o mar ou numa duna do deserto abrasador, vencidas pela exaustão, perdidas num turbilhão de ventos contrários, confundidas na rota por fenómenos meteorológicos tão diversos como inesperados.
Outras ameaças se perfilam: quando o exército multiforme dos passeriformes europeus atravessa o Mediterrâneo, por exemplo, cá estarão à sua espera, os falcões-de-Eleanor (Falco eleanorae) que capturarão milhares deles, e mais uma panóplia de predadores farão o mesmo. Será uma rude prova a ultrapassar, antes que o voo dos pequenos pássaros, numa rota sem escala possível, os leve a sobrevoar as quentes areias do Saara, onde o calor extremo e – terrível tormenta! – as tempestades de areia, podem significar a morte para milhões delas. Calculou-se que 2 em 5 andorinhas morrem em pleno deserto antes de poderem chegar às latitudes africanas meridionais tão desejadas, ou durante a viagem inversa até às terras da Europa onde nasceram!
A verdade é que, para além de tudo isto (e não é pouco) as aves enfrentam outras armadilhas letais – as representadas pelo Homem e seus hábitos e artefactos.
Antes de mais, a caça. Na sua viagem norte-sul, muitas espécies são simplesmente massacradas, apesar das leis que procuram minorar os efeitos arrasadores da actividade cinegética nas populações migratórias.
Se teoricamente o grou, a cegonha e outras espécies protegidas poderão voar descansadas (na Europa, porque ao chegar a África já a situação é bem diferente) para os anatídeos, as rolas, os pombos-torcazes e os tordos, entre muitos outros, a travessia das orlas mediterrâneas significa uma dura provação. Milhões de rolas e pombos são abatidos por caçadores espanhóis e franceses aquando da travessia dos Pirinéus. Os patos dificilmente encontram sossego nas zonas húmidas onde pretendem invernar, exceptuando certas reservas naturais. O relatório oficial da época de caça 1998-99, em França, esclarece: 1.126.000 patos abatidos legalmente, o que exclui caça furtiva, aves feridas ou desaparecidas, etc!
A chacina outonal dos tordos, em Portugal inclusive, é particularmente revoltante: mal refeitos de uma jornada exaustiva que os trouxe da Escandinávia e Inglaterra (onde a lei os protege!), os pássaros são dizimados sem descanso e sem moderação. São, diz-se, as vítimas de não haver caça de maiores dimensões… e as espingardas recusam calar-se!
Em Malta, ilha estratégica para a travessia mediterrânea de numerosas espécies, a “tradição local” é a hecatombe de tudo o que voe – a tiro, com armadilhas, tudo pode ser morto ou capturado e o tráfico engorda fortunas. Rapinas como a águia-pesqueira, o falcão-abelheiro e os peneireiros têm neste país a causa do “desaparecimento” das suas populações nórdicas e da Europa central.
Juntemos a esta tragédia os obstáculos que por toda a parte a mão humana semeia: redes nos campos, vedações cinegéticas e outras, aerogeradores, edifícios envidraçados (que nos EUA, se calcula sejam responsáveis por milhões de óbitos entre aves migradoras), toda uma parafernália que inclui ainda as linhas de alta tensão atravessando os campos.
A destruição dos lagos, pântanos e outras zonas húmidas, a ocupação turístico/urbana de pontos cruciais ao longo do litoral, a rarefacção dos bosques e sebes vivas, a contaminação das águas e de toda a cadeia alimentar por poluição vária, (insecticidas, etc) – eis mais alguns elementos de perigo.
A poluição dos meios aquáticos pode constituir um grave problema para as aves. Todos os anos os anatídeos são envenenados ao engolirem os pequenos grãos de chumbo que os caçadores depositam nas zonas húmidas ou nos campos. E os grandes acidentes também acontecem: o Parque Nacional de Doñana, no sul de Espanha, foi atingido pela ruptura de uma imensa lagoa de retenção de águas contaminadas com metais pesados, há dois anos. Que se saiba, 5000 gansos-selvagens não regressaram à Escandinávia natal, só no primeiro ano após o desastre.
O fenómeno das alterações climáticas traz consigo outras provações para as aves viajantes— na verdade para toda a biodiversidade. Efeitos importantes foram já detectados e descritos, sendo de prever que algumas espécies não lograrão adaptar-se às consequências do aquecimento global, demasiado rápidas para que mudanças de hábitos milenares surtam efeito em tempo útil. A instabilidade no ciclo hidrológico, a escassez de alimento, o desencontro entre épocas de migração e a disponibilidade alimentar a escassez de zonas húmidas devido a secas prolongadas podem ditar o destino trágico de muitas aves migradoras.
Preocupante é a quebra populacional alarmante das chamadas «aves comuns» --uma parte das quais são migradoras— que ninguém esperaria ver ameaçadas tal a sua aparente abundância passada e que não beneficiam sequer do estatuto oficial de «em vias de extinção». Mudanças súbitas na industrialização e intensificação da agricultura, urbanização de espaços rurais e disseminação de poluentes na cadeia alimentar são factores que concorrem para o gradual desaparecimento de aves que coexistiam com o Homem há muitos séculos num contexto de ruralidade que o «progresso» --ou o que passa com esse nome— degradou profundamente.
S.O.S. pelas aves migradoras? Se nada for feito, à escala local e nacional mas também internacional, as milenares rotas das grandes viajantes poderão ser só um sonho passado, na perspectiva das próximas gerações!
Num planeta doente e desencantado, restaria aos Homens, por exemplo, a leitura da fantástica obra da escritora sueca Selma Lagerlöff – “ A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia” – a bela odisseia dos gansos-selvagens. Ou quem sabe, recuar à Antiguidade e perder-se na Ilíada, onde Homero refere “como se eleva até aos céus a voz clamorosa do povo dos Grous, quando, fugindo das geadas e das torrentes dos céus, atravessam com grandes gritos o impetuoso oceano e levam a destruição e a morte à raça dos pigmeus”.
Bernardino Guimarães
Tomamos para este trabalho o título do filme de Jacques Perrin “Le peuple Migrateur”.
(Publicado em Tribuna da Natureza, Nº 11 Verão 2002)
Tomamos para este trabalho o título do filme de Jacques Perrin “Le peuple Migrateur”.
(Publicado em Tribuna da Natureza, Nº 11 Verão 2002)
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ResponderEliminar"Que vontade indómita e ancestral lhes dá a força do voo e a precisão da rota?"
ResponderEliminar"Não sabemos qual será a percentagem das vítimas, caídas sobre o mar ou numa duna do deserto abrasador, vencidas pela exaustão, perdidas num turbilhão de ventos contrários,"
Vontade indómita versus vencidas pela exaustão...
A vontade indómita vencerá, tenho a certeza.
Fantástico seu artigo, meu amigo! Adorei o grau de observação e narração sobre as espécies, há tanto a ser descoberto ainda, tanto... e tanto a ser apreendido com esses seres!
ResponderEliminarBeijos imensos