terça-feira, março 17, 2009

PEIXES, ANIMAIS E HOMENS

Padre António Vieira, por Arnold van Westerhout (1651-1725)

Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam ou domesticam. Dos animais terrestres, o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor! Trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonerias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer o osso, mas levado onde não quer por uma trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado ou pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração de carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. Entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis sós convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e de portas adentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o mundo, e de todos os animais, quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, a assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam; antes não só escaparam todos, como ficaram mais largos que antes, porque a terra e o mar era tudo mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque não morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe ou retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer com que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados ao poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens pelos seus pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles foram castigados e os que andavam longe ficaram livres. Vedes, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.

Padre António Vieira
(Sermão de Santo António II)

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