quarta-feira, março 18, 2009

SÓ PARA DIZER

Foto de Raízes.e.Asas

É mesmo assim: começa-se a escrita sabendo só o destinatário— ou nem isso, que as páginas amareladas dos escritos na gaveta as cartas de amor os recibos e bilhetes de comboio por vezes morrem onde menos se espera— e depois a coisa vai. Mas o que é sempre melhor é a gente saber que mensagem tem. O que quer dizer. O querer diz correr.
Depois não se sabe como. A mim fogem-me as palavras, uso-as demasiado, ficam velhas, caem de cansaço no sofá antiquíssimo da sala mais funda, ficam lá a dormir, nunca regressam, não querem ser repetidas, as palavras, dormem e mesmo dormindo acusam-me, de as atormentar em usos indevidos, de fazer vida minha com a vida delas. E as coisas param, por falta de brisa imobiliza-se o tempo, deixo-me esquecer, tento ser paciente.
Quando o melro canta e desamanhece em todas as paragens do mundo ou a lua brilha enorme e absurda e as marés exultam e se expandem através dos abismos, quando os átomos respondem infímos à música das esferas e nas galáxias se geram as grandes sombras, o mundo recomeça. Há outra vez barcos e aves migradoras e coisas que pulsam que cantam que morrem, a vida é real e a matéria organiza-se como se uma grande paciente e distante finalidade lhe trouxesse o sopro e a revelasse. Tudo respira: os grandes peixes os imensos lagartos das ilhas ao longe, placas continentais roçam-se e zangam-se, colidem cometas e ao colidirem uma antiga palmeira recorta-se contra o céu de fogo em contra-luz.
Acorda-se. As palavras invadem-me outra vez, mas agora tudo se ergue como se fosse novo e inicial.
Palavras: cavalo na orla do deserto, areia/vidro na lâmina da praia, noite convexa abrindo os pulmões e partindo. Coisas: fotografias como fósseis impressos, moscas ancestrais presas no âmbar, sândalo entre o fumo, tão azul.
Cores: cinza para o homem, dourado para o horizonte, verde para o oxigénio, rubro para a montanha. Azul-escuro para as grandes despedidas. Púrpura-navio.
Circum-navego, não digo. Divirto-me entre nada e nada, velocidade, texturas, nucas, perfis de lepidópetros, asas de libélula, tempo e espaço, microscópios para ver as estrelas.
Porque é tudo tão longe? Perguntam as palavras ao acordarem, derrubando jarros sobre mim, líquido da cor da esmeralda, clorofila imperfeita. Tudo é longe porque, me diziam, os grandes navios passam agarrados ao fio do horizonte, têxtil do fundo das eras, madrugam no redondo das ondas e nunca chegam perto de quem os vê da costa. Existem para serem longe, talvez passem ao longe e já nem existam, tal a distância. Isto dou eu em resposta, fugindo ao côncavo da questão, mestre na arte da fuga, abstracção pura, risco no metal, respiração pesada, cor de mármore por fora. E detecto os pormenores, palpáveis, vejo todas as janelas abertas e todos os rins cansados de amor, mesmo as almas exangues deitadas no chumbo do sol ao meio-dia.
Um dia desisto. Mas não agora. Tenho que saber a quem se destinam estas palavras, que sentido tem a posição relativa dos astros, o que move as formigas e as algas, porque viajam as aves. Porque desaguam corredores na penumbra do quarto?
Sem eco de resposta, pronto, sabe-se lá onde vai parar este escrito, em que éter navega e a que ilha chega. Que tem a haver a tristeza de uns olhos e as pestanas de uma alma com tudo isto?
Chamo-lhe destino por facilidade: pode ser um grande vento, a montanha sobreelevada pela lava, fragmentos de ilhas, a constelação de quartzo e de grafite cujo centro/coração é diamante. Não importa nada. Reuni estas palavras para não me repetir à procura. E são mícrons, células, pulsares, ondas salgadas, electrónica, correio, veia puríssima.
Como quem diz.

BG (retirado do arquivo de divagações errantes do Peregrino)

2 comentários:

  1. Longe, muito pr' além do fio azul do horizonte
    Onde tuas palavras vêem passar grandes navios
    Outras palavras se erguem, questionam, esmorecem
    Ou…acreditam, reavivam, sorriem e aquecem!

    Contentes por ler nas tuas saber, beleza, poesia,
    Cultura, estilo, sentimento e sedução...
    Outras palavras singelas secam...
    E não encontram senão
    Mais apego e admiração…

    O meu rosto triste que olha o mar
    Nesta ilha de lava e bruma
    Peregrino, hoje teve brilho no olhar
    Pois tuas palavras, uma a uma,
    Com sorriso nos lábios, me fizeram sonhar!
    Aqui, deste lado do Mar
    Onde os navios chegam perto
    E o longe não é deserto
    Onde a Natureza é Maravilha
    E os trilhos só dão ao Mar
    Sinto alegria por me perder
    E nas tuas palavras me encontar
    E daqui me vou…
    Continuando a navegar…
    De ilha em ilha…
    Azul em azul
    Verde em Verde
    Continuar a viver
    Continuar a sonhar
    Para esquecer
    E recordar
    E enquanto não chega à ilha
    O herói dos meus sonhos
    Eu serei a onda perdida
    Esquecida
    Como as cartas de Amor da tua vida
    Que um dia Gostaria de ler
    Nos teus olhos, quando te pescar
    Agora resta-me sorrir
    E acreditar.
    H.

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  2. Saber a quem se destinam dá equilíbrio.
    Nunca fugir aos pormenores e, acima de tudo ,nunca magoar o emaranhado de de células que são as pessoas que te rodeiam e amam.
    A capacidade de começar tudo de novo , como na natureza, e não ser mais mestre na fuga.
    Parabéns pelo belíssimo texto.

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