O aviso chegou de um vizinho, sem cuja simpatia e interesse nem sequer teria dado pela ocorrência. E de um facto importante se trata.
É que, cronista amante das aves mas distraído certamente, passou-me ao lado, confesso, a estadia, no ano passado, de um pica-pau, diariamente perfurando um choupo ali mesmo no jardim a poucos metros de onde moro. Para os leitores menos versados nestas andanças das voláteis, ou igualmente distraídos, avanço que não é fácil observar este pássaro, corpulento como um melro, nas profundezas da selva urbana. Mais facilmente os vemos num dos raros bosques que ainda não arderam na periferia da cidade e mais facilmente ainda em algum recanto natural arborizado mais distanciado da urbe. O meu simpático vizinho deu-me a conhecer a notícia e o registo dela em fotografia. Detive-me, emocionado, nas imagens a cores— não há dúvida, tratava-se de um pica-pau-malhado-grande (Dendrocopus major), uma ave que não sendo rara no nosso país, está longe de ser comensal da grande mesa citadina. Parece que se manteve ali, durante algum tempo, naquele pequeno jardim que remata uma área residencial na zona do Lima 5. O meu vizinho, e outros amigos, chegaram a suspeitar de uma nidificação no local. Pouco provável, já que só se avistou um indivíduo solitário, tamborilando ruidosa e ritmicamente na madeira de um choupo-branco.
Distracção à parte, eu mesmo já por ali vislumbrei uma vez por outra a carriça minúscula e nervosa, o pisco-de-peito-ruivo e a andorinha-dos-beirais que regressou de África, mesmo um pombo-torcaz inabitual. E os melros, negros, com o flauteado claro do seu canto, além dos ladinos pardais-comuns, curiosos e saltitantes, que por cá consideramos banais mas que são cada vez mais raros em toda a Europa, vá-se lá saber porquê. Segredaram-me que até o gaio, por ali passa, uma vez por outra, grande vulto azul, com o seu chamamento rouco e repentino.
Este acontecimento deixou-me feliz— e não pude deixar de partilhar essa alegria com os meus leitores, contando com sua geral benevolência para me afastar dos grandes temas e problemas da cidade.
Por falar nisso, o pica-pau pode mesmo inspirar uma reflexão, boa em si mesma, digo eu, e boa para a economia (ou ecologia) da crónica: porque parece ser, nos dias que correm, mais fácil observar certas aves selvagens na cidade que até parecem ter descoberto recentemente o fascínio dos grandes centros? É ver as garças-reais e os corvos-marinhos ao longo do Douro e no Estuário, as rolas turcas em cada jardim, as migradoras de passagem na marginal ribeirinha ou no Parque da Cidade.
Haverá então mais fauna silvestre na cidade, hoje? Mesmo com tanto trânsito automóvel, tão má qualidade do ar, tão pouco espaço livre do betão? Há quem diga que um conjunto de factores, como a invasão urbana da periferia rural, os incêndios nas matas e bosques, as monoculturas de exóticas— eucalipto principalmente— e o declínio da agricultura tradicional, podem ter «empurrado» as aves e outros animais para as cidades, lugar por excelência do Homem e dos seus sonhos imperfeitos. Além disso, é certo que nas cidades não há ao menos caçadores e traficantes de aves em exercício…o que pode levar certas espécies a trocarem o sossego pela segurança!
Ou será que simplesmente andamos mais atentos?
Devo ao meu vizinho e aos seus amigos esta visão, mesmo que fotográfica, de um pequeno, belo e suave enigma, em forma de pica-pau.Com a certeza de que, apesar dos pesares, a Natureza persiste e existe mesmo nos pequenos, frágeis recantos que lhe deixamos. Assim sendo, como alguém me dizia, nem tudo está perdido.
É que, cronista amante das aves mas distraído certamente, passou-me ao lado, confesso, a estadia, no ano passado, de um pica-pau, diariamente perfurando um choupo ali mesmo no jardim a poucos metros de onde moro. Para os leitores menos versados nestas andanças das voláteis, ou igualmente distraídos, avanço que não é fácil observar este pássaro, corpulento como um melro, nas profundezas da selva urbana. Mais facilmente os vemos num dos raros bosques que ainda não arderam na periferia da cidade e mais facilmente ainda em algum recanto natural arborizado mais distanciado da urbe. O meu simpático vizinho deu-me a conhecer a notícia e o registo dela em fotografia. Detive-me, emocionado, nas imagens a cores— não há dúvida, tratava-se de um pica-pau-malhado-grande (Dendrocopus major), uma ave que não sendo rara no nosso país, está longe de ser comensal da grande mesa citadina. Parece que se manteve ali, durante algum tempo, naquele pequeno jardim que remata uma área residencial na zona do Lima 5. O meu vizinho, e outros amigos, chegaram a suspeitar de uma nidificação no local. Pouco provável, já que só se avistou um indivíduo solitário, tamborilando ruidosa e ritmicamente na madeira de um choupo-branco.
Distracção à parte, eu mesmo já por ali vislumbrei uma vez por outra a carriça minúscula e nervosa, o pisco-de-peito-ruivo e a andorinha-dos-beirais que regressou de África, mesmo um pombo-torcaz inabitual. E os melros, negros, com o flauteado claro do seu canto, além dos ladinos pardais-comuns, curiosos e saltitantes, que por cá consideramos banais mas que são cada vez mais raros em toda a Europa, vá-se lá saber porquê. Segredaram-me que até o gaio, por ali passa, uma vez por outra, grande vulto azul, com o seu chamamento rouco e repentino.
Este acontecimento deixou-me feliz— e não pude deixar de partilhar essa alegria com os meus leitores, contando com sua geral benevolência para me afastar dos grandes temas e problemas da cidade.
Por falar nisso, o pica-pau pode mesmo inspirar uma reflexão, boa em si mesma, digo eu, e boa para a economia (ou ecologia) da crónica: porque parece ser, nos dias que correm, mais fácil observar certas aves selvagens na cidade que até parecem ter descoberto recentemente o fascínio dos grandes centros? É ver as garças-reais e os corvos-marinhos ao longo do Douro e no Estuário, as rolas turcas em cada jardim, as migradoras de passagem na marginal ribeirinha ou no Parque da Cidade.
Haverá então mais fauna silvestre na cidade, hoje? Mesmo com tanto trânsito automóvel, tão má qualidade do ar, tão pouco espaço livre do betão? Há quem diga que um conjunto de factores, como a invasão urbana da periferia rural, os incêndios nas matas e bosques, as monoculturas de exóticas— eucalipto principalmente— e o declínio da agricultura tradicional, podem ter «empurrado» as aves e outros animais para as cidades, lugar por excelência do Homem e dos seus sonhos imperfeitos. Além disso, é certo que nas cidades não há ao menos caçadores e traficantes de aves em exercício…o que pode levar certas espécies a trocarem o sossego pela segurança!
Ou será que simplesmente andamos mais atentos?
Devo ao meu vizinho e aos seus amigos esta visão, mesmo que fotográfica, de um pequeno, belo e suave enigma, em forma de pica-pau.Com a certeza de que, apesar dos pesares, a Natureza persiste e existe mesmo nos pequenos, frágeis recantos que lhe deixamos. Assim sendo, como alguém me dizia, nem tudo está perdido.
Bernardino Guimarães
( Crónica publicada no Jornal de Notícias, 12/6/2007. Desde aí, uma acção de «limpeza» da Santa Casa da Misericórdia do Porto aniquilou uma parte do coberto arbóreo que deu abrigo ao pica-pau da crónica. Tristezas...)
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