segunda-feira, junho 15, 2009

A CULPA É DE DESCARTES?

A celebração do Dia Mundial do Animal teve o inegável mérito de nos lembrar a importância dos seres que nos rodeiam, tão próximos e tão estranhos, e em particular aqueles que elegemos como nossos companheiros de vida e residência, ao ponto de há muito os considerarmos “domésticos”. Como reverso da medalha, o descaso, quando não a crueldade com que os tratamos, tantas vezes. Os animais despertam em nós emoções contraditórias, é certo. A nossa relação com eles, (pares da espécie humana no mesmo reino zoológico) é influenciada pelo pensamento que domina cada época e civilização, maneiras de ver a Natureza e o papel do homem nela.
Para ilustrar uma visão totalmente antropocêntrica (centrada no homem) costuma-se ir buscar René Descartes, cujos erros de avaliação têm sido muito discutidos no mundo científico de hoje. O seu pensamento, de qualquer forma, marcou profundamente um certo discurso moderno sobre a Natureza. O filósofo não tinha, que se saiba, nenhum problema pessoal com animais; antes procurava, é certo, enaltecer o Homem, tornado centro do Universo e medida de todas as coisas. Para dar forma e força a tal intenção e conceito, era preciso apoucar, rebaixar a condição animal--mais realçando o brilho e a superioridade do Homo sapiens sapiens, senhor do mundo e excepção de racionalidade na Criação.
Descartes teorizou bastante acerca dos animais, servindo-se muito da noção de autómato. O animal seria, então, uma máquina, nada mais, classificação à qual o Homem escapava por via do domínio da razão.
“ Se algumas dessas máquinas tivessem os órgão e a forma exterior de um macaco ou de qualquer animal sem razão, não teríamos nenhum meio de reconhecer que elas são de natureza diferente dos animais.” – escreveu o filósofo, para quem os animais não apenas têm menos razão do que o Homem, mas não têm mesmo absolutamente nenhuma.
Este pensamento, longe de ser bizarria peculiar de um autor, impregna indelevelmente, ainda hoje, a nossa maneira de encarar o animal, o seu direito ou a ausência dele.
Quando cidadãos “normais” abandonam, em algum sítio esconso, o animalzito que, durante meses ou anos viveu na sua casa e foi talvez “brinquedo” para os filhos; quando caçadores, no entanto tão zelosos dos seus companheiros de jornada, deixam o cão no ermo da montanha após o fim da época venatória; quando os animais destinados à alimentação humana não são, ao menos, poupados ao sofrimento tão atroz como desnecessário; quando…não, tudo isto não pode ser apenas culpa do pobre Descartes.
É certo que muita coisa mudou. Sabemos agora, que os animais, em grau e de forma diversa, expressam sentimentos e emoções e a Ciência mais actual procura mesmo escrutinar neles vestígios de “senso moral”. E sabemos – isso de certeza certa – que sentem dor e prazer, sofrem solidão e frio, adoecem e morrem como nós humanos. Isso bastará, espera-se, para justificar uma mudança de atitude por parte dos seres inteligentes que queremos ser, não só em relação aos animais domésticos, mas considerando toda a Criação, no que podem convergir as doutrinas racionalistas e a tradição espiritual, oriental ou ocidental – será preciso invocar S. Francisco de Assis?
Acima de tudo, que essa mudança se traduza em coisas concretas: nos canis municipais, nos pobres zoos que temos, no transporte de gado e de aves, nos matadouros, nos palcos e arenas onde o sofrimento é diversão para alguns. Ou no inadiável combate que é preciso dar ao escandaloso tráfico de animais, hoje com um peso financeiro mundial semelhante ao da droga e para o qual o nosso país é porta de entrada na Europa e mercado certo.
Vale a pena lembrar, como imagem impressiva, o espectáculo lamentável da portuense Feira dos Passarinhos. Este cronista lembra-se do que lá viu de degradante há uns anos: ao domingo, a Rua da Madeira enchia-se de pássaros e outros bichos exangues, entalados em gaiolas minúsculas à torreira do sol. Espécies protegidas, muitas delas. Pilhadas um pouco por todo o lado. Passou algum tempo, a Feira mudou de local. De hábitos, espero que sim.
Bernardino Guimarães
( um texto escrito em Outubro de 2004. Para arquivo do Peregrino.)

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