Dizem que os antigos e bravos gauleses, pelo menos os da remota aldeia onde vivia Astérix, nada temiam…excepto que o céu lhes caísse na cabeça!
Alguma coisa semelhante ocorre no Porto, em contexto peculiar de continuada desertificação da Baixa. O comércio tradicional, resistente como o foram os gauleses face ao domínio do Império, congeminou soluções e afinou estratégias para um tempo em que dominam, cercando, os centros comerciais e as chamadas «grandes superfícies».
Outro dia surgiu a público a ideia: cobrir Cedofeita, dar um tecto à velha rua comercial e afável, tapá-la com vidro e metal. O luminoso (?) projecto parece ter a adesão dos lojistas— que de resto o encomendaram— mas não tanto dos moradores. Pouco importa. Não ficou claro é de que intempéries, de que céus inclementes se pretende proteger a rua, nem em que grau se espera despertar o interesse dos cidadãos. Depois da invenção do guarda-chuva, terá ficado algo limitada a utilidade de uma cobertura em rua prestigiosa e pedonal!
Só que o conceito, peregrino como é de esperar e por isso insistente, vai mais longe. Rezam as notícias: quer-se «dar a Cedofeita um novo céu». Não se exige mais nem se pode esperar menos. Entre teologia e astronomia, baralham-se conceitos na mente desprecavida. E anda tanta gente a queixar-se da poluição luminosa, que nos esconde as estrelas na cidade, e a vantagem do comércio de rua sobre os abafados e claustrofóbicos centros comerciais, e anda outra muita gente a gabar o nosso clima ensolarado (e enluarado em sendo noite bonita) e as delícias da brisa atlântica que nos acaricia vinda do mar…pode a queda de meteoritos, sempre imprevista, ser assim prevenida?
Já se deve ter notado: não gosta o cronista de tal ideia, difícil de justificar, cara de pagar e triste de se ver quando realizada, a julgar pelo esboço publicado. Mas quem escreve estas linhas gosta de Cedofeita, do seu movimento e do ar que se respira. Gosta do Porto e do seu comércio, e ouve dizer os entendidos que mais valia investir-se na qualidade das lojas e do atendimento, na variedade da oferta e na personalização do consumidor.
Muito há a fazer: trazer habitação para a Baixa, reabilitar o edificado, criar mais ruas pedonais e humanizar, tornar menos agressivo e poluído o ambiente urbano. Criando diferença e aproveitando aquilo que o comércio de rua pode oferecer de original e de melhor.
Então— justos Céus! — para quê tapar o sol…com peneira de ferro e vidro? Não quererão climatizar a rua, dar-lhe com o ar condicionado, espalhar no «tubo/ Cedofeita» os odores vivos dos perfumes da moda, os sons polifónicos dos telemóveis?
Decididamente, não parece boa ideia tentar dar-nos um «novo céu», que para isso já labutam seitas e ideólogos. A rua não precisa de se defender da luz e do vento, da chuva e do luar. A cidade toda, essa, precisa de reinventar a qualidade do ar, precisa de ter gosto nos seus jardins e de combater a praga do ruído, do estacionamento caótico e do tráfego rodoviário asfixiante.
Pior que tudo é que uma tal ideia significa, em última análise, a vitória definitiva e expressiva do modelo «centro comercial». Assim ficará marcada a ideia de que comércio de rua é coisa do passado, que as grandes cadeias do consumo tinham razão quanto às desvantagens da via pública. Se as ruas quiserem concorrer com esse «templos» comerciais…terão de deixar de ser ruas.
A ideia faz ricochete, sem o querer. E tornando feia uma rua bonita, com medo do sol e da chuva, arrisca-se a demonstrar apenas o contrário do que pretendia testemunhar.
Bernardino Guimarães
(Este texto veio a lume no JN há uns dois anos. Como a ideia— peregrina também— parece estar ainda em lenta cogitação na cabeça de alguns, fica aqui a crónica e a opinião, para que conste.)
segunda-feira, julho 13, 2009
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