Estamos mais descansados – foi em “sentido figurado” que o presidente da Câmara de Viseu e da Associação Nacional de Municípios pediu a populares que corressem “à pedrada” os inspectores do Ministério do Ambiente. Assim justificado – mesmo que nas suas bizarras declarações tivesse dito estar “a medir bem as palavras” – o autarca pode continuar a ser o máximo representante do poder local português. A menos que se concretize a possibilidade de ser processado por apelo à violência e à obstrução da lei, como pedem alguns legalista ingénuos que não conhecem o “país real”. Seria justo, mas como condenar o que foram apenas exercícios linguísticos para população ouvir?
Certo é que a grosseria e a alarvidade (mesmo em sentido figurado, é claro) estão longe de ser as melhores armas para meter ombros à cruzada anti-ambiente que se desenha no panorama nacional. Outros discursos, mais polidos e menos caceteiros, vão em sentido idêntico – e talvez se mostrem mais eficazes.
Não afirmou o presidente da Agência Portuguesa de Investimentos que o ambiente e o ordenamento do território estavam a travar o “desenvolvimento económico”? Que dizem os industriais que pedem mais direitos de poluição, senão que (em sentido figurado) é preciso correr á pedrada as políticas ambientais e até os compromissos internacionais do país? Seria exaustivo listar as afirmações que vão no mesmo caminho – mesmo se nos reportarmos aos últimos meses. Um promotor turístico que pretende construir em área protegida apelidou há tempos a Comissão Europeia de “fundamentalista!” e é raro o dia sem notícia de pronunciamentos contra as regras, leis e planos que “impedem o progresso.”
O mais curioso é que tudo isto é ouvido sem um claro sobressalto de indignação. Anestesiada ou simplesmente desatenta, a opinião pública pouco reage – em tempo de crise, é mais fácil fazer passar a demagogia.
Mas seria bom não menosprezar estas vozes que querem lucros sem normas e negócios sem lei. Autarcas que tentam disfarçar o crime de destruição sistemática e desapiedada do território, da paisagem, do património histórico e natural – que vão levando a cabo sem remorsos e quase sem limites.
De resto, esse Portugal feio, sujo e desordenado há-de ser, isso sim, um travão ao desenvolvimento.
Que turismo podemos oferecer no nosso país de betão espalhado a esmo, de rotundas e de rios poluídos? Que futuro pode ter uma nação que não respeita a sua paisagem, o seu litoral, que não protege os seus poucos solos férteis, que estende construção especulativa em mancha de óleo, enquanto os centros históricos das cidades caem de velhos e de abandonados? Como esperar progresso quando a economia não produz mas polui mais e gasta mais energia que os mais desenvolvidos?
Basta a pura verdade, o rigor dos factos para desmentir a ideia de que o problema está na defesa do ambiente. O que se passa é o contrário. Mesmo se alguns cavalheiros planeiam, para seu benefício exclusivo, fazer de Portugal um caixote de lixo, uma reserva integral de agentes económicos sem mérito e de políticos sem brio nem escrúpulos.
A reforma do poder local não pode esperar mais, sob pena de descrédito.
Convém dizê-lo – preocupantes são as conexões entre política e construção civil, entre urbanismo disfuncional e interesses pouco claros. As “pedradas” e outras ameaças, essas quase dão vontade de rir. E não nos devem surpreender – o caciquismo sempre foi um caso que os poderes públicos nacionais preferem ignorar, sem que nada se faça para libertar a necessária autonomia local das suas formas perversas e autoritárias – sempre em sentido figurado.
Bernardino Guimarães
(Esta crónica foi publicada no JN a 4/7/06 , logo a seguir às declarações do autarca Ruas. Agora que a criatura foi condenada a pena de multa pelas mesmas declarações— entendidas como incitamento à violência— o Peregrino tirou o texto da gaveta.)
domingo, julho 19, 2009
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