domingo, agosto 16, 2009

RAÚL BRANDÃO

«Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm passado os homens dos municípios— por toda a parte transformaram as terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à espreita do naufrágio e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas de interesse: o cabo (hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que é um esplêndido cenário para o último acto da «Tosca» --e um ponto de vista admirável para o Sul— um grande ponto indistinto a roxo, com um ou outro casal, uma ou outra aldeia perdida e sem nome».

Isto escreve Raúl Brandão em 1919, na sua obra «Os Pescadores». O tom de crítica aos municípios pela degradação da paisagem soa como se fosse hoje— e podia ser.
Mas na mesma obra, Raúl Brandão deixa-se fascinar pela praia do Baleal:

«Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia de terra portuguesa. Não passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros— mas esta rocha é uma ossada, e talvez o último vestígio da Atlântida, saindo do mar azul a escorrer azul e presa à terra por um fio de areia que nas marés mais vivas chega a desaparecer. Deste ancoradouro, com uma baía ao sul formada pelo Carvoeiro e com outro côncavo ao norte entre a rocha e a costa, vê-se o esplêndido panorama da terra, do mar e do céu. Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no meio do mar dramático. Voga-se em toda a luz do céu e em toda a cor do mar. Dum lado, o areal em circo e aquele grande morra estendido pelo mar dentro; do outro, até onde a vista alcança, todos os tons da costa, desde as labaredas das terras sulfurosas e as chapadas negras dos rochedos, com riscos de vermelho, até ao biombo que vai passando e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois transparentes até atingir o indistinto e o diáfano numa última palpitação de claridade nublosa».
Raúl Germano Brandão nasceu na Foz do Douro em 12 de Março de 1867 e morreu em Lisboa em 5 de Dezembro de 1930.
Sensível, impressionista, o escritor dizia, em 1918 («Memórias I»): «Se tivesse que recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo; não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubiando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra.»
Vitorino Nemésio, que o conheceu bem, escreveu sobre ele na obra «Raúl Brandão íntimo»: «…uma vida que é sonho na lama e luz nas catacumbas.»

A sua infância na Foz do Douro deve ter marcado a sua sensibilidade, a luz dourada do entardecer a o azul mutável do mar podem ter influído na sua especial predilecção pela descrição de cores e matizes luminosos, a paixão pela natureza e pelo mar. A antiga povoação piscatória da sua Foz talvez tenha deixado em si o interesse pela vida dos que arriscam tudo nas vagas do Oceano— que deixou tão bem expressa numa das suas obras mais importantes, «Os Pescadores».
De Brandão diz António M. B. Machado Pires: «A obra de Raúl Brandão apresenta duas faces: uma é a dos desgraçados, dos pobres, dos que sofrem, do mundo da Dor, do Sonho recalcado, dos «fundos de poço» da natureza humana; outra é a do escritor de viagens e paisagens, da luz e da cor, do azul que predomina e que ele ama acima de todas as cores— o pintor de «Os Pescadores» e «As Ilhas Desconhecidas». Raúl Brandão foi também jornalista, e a colaboração empenhada na Imprensa foi uma constante ao longo de boa parte da sua vida, deixando escritos que ainda hoje impressionam pela sua sensibilidade ao mundo, ao meio que o rodeava e ao sofrimento concreto das pessoas reais.
A sua obra parece dominada por um tema: o Sonho. A sua escrita é inspirada pelo encantamento das cores e da luz que a vida revela, ao mesmo tempo que a angústia e a desilusão também se manifestam, no meio dos dramas humanos de sempre. Talvez por isso permaneça tão actual.

Obras: (algumas só)
1890— Impressões e Paisagens
1901— O Padre
1903— A Farsa
1906— Os Pobres
1912— El Rei Junot
1917— A Conspiração de Gomes Freire
1919-Memória I
1923— Os Pescadores
1925— Memórias II
!926—As Ilhas Desconhecidas
1930— Portugal Pequenino
1931— O Pobre de Pedir, (póstumo)
1933— Vale de Josefat (3 volume das Memórias, póstumo)

Vale a pena citá-lo outra vez: «a que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada…» (Memórias)
Bernardino Guimarães

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