terça-feira, março 29, 2011

OUTRA CIDADE

A chuva parece querer desmentir a Primavera e os seus sinais, e a cidade carrega-se daquele cinzento azulado e brumoso que lhe empresta expressão e gravidade; mas os renovos das árvores e as pétalas caídas das magnólias falam-nos de outra coisa. A estação do ano abriu as suas portas novas e o tempo bom já não tarda.
Os sinais de Primavera são múltiplos e de entre eles assoma a presença das andorinhas no céu do Porto. O cronista ainda não viu os andorinhões-pretos silvando vertiginosos, mas mais dia, menos dia, eles revelar-se-ão e só o citadino mais distraído não os observará. Os dias mais longos trarão esses e outros regressados de África, heróicos migrantes transcontinentais que se juntarão ao bulício da cidade e aos fins de tarde nervosos e barulhentos do velho burgo.
Os pássaros sedentários, que por cá, mais ou menos persistindo nos locais de sempre, passaram o Inverno, esses agitam-se e ganham outra visibilidade, que pode ser aproveitada pelos amantes da Natureza: o melro negro com o seu canto matinal aflautado e metálico, os pardais ladinos e saltitantes, a rola-turca com o seu belo colar negro e o seu grito característico.
A presença, agora bem notória das aves estivais contrasta com a ausência das invernantes que iniciaram o seu longo voo de regresso a paragens mais nórdicas, entre as quais os estorninhos, os pintassilgos-verdes e muitas aves aquáticas e marinhas que por cá descansaram algum tempo ao longo das praias, nos lagos do Parque da Cidade ou no estuário do Douro.
A energia primaveril impele a uma maior proximidade com a Natureza, sentida como necessidade mesmo pelos urbanos mais empedernidos—e talvez esse apelo leve muitos cidadãos a uma redescoberta da sua cidade.
Entrar no jardim de S.Lázaro de tantas e tão saudosas recordações, sentar-se num banco junto ao lago com o seu nadador de mármore, à sombra das velhas magnólias, eis uma visita que pode ser reconfortante para o portuense—e interessante e bela para o forasteiro. Sem abdicar das vistas sobre o rio Douro, podemos ainda percorrer os socalcos da Quinta das Virtudes ou passar uma tarde no Jardim Botânico descobrindo maravilhas sob a forma de árvores, preciosidades vivas e mágicos recantos que nos lembram a marca romântica que no Porto é epidérmica e constante.
São apenas exemplos de espaços onde a Natureza existe porque a mão humana assim o quis e moldou, um sentimento de pertença e de integração, de harmonia entre a construção e o natural, entre a mineralização e a vegetalização, inserindo essa união no tecido da cidade.
Claro que o exemplo dos fazedores de jardins portuenses, em diferentes épocas, nem sempre foi estimado e um urbanismo desumanizado criou rupturas e distorções que são hoje, factores de mal-estar.
Mas existe uma cidade que é preciso não esquecer, de jardins e de monumentos, de árvores e de flores, de sítios e de memórias, de cultura e de natureza que aguardam o nosso olhar atento. Essa observação, que deve incluir as gentes, as falas e as ruas, pode ensinar-nos muito.
As aves, nas peregrinações do cronista, são como que emblemas de um certo sentimento de cidade. Nesta primavera ainda tímida, o azul transcendente dos pavões do Palácio de Cristal chega para ilustrar a beleza dos mais ricos e valiosos locais da cidade.
Para não esquecer as migrantes, refiro o bando de corvos-marinhos pousados junto à Ponte do Freixo, que uma amiga fotografou— reunidos para o regresso a casa, após uns meses voando entre os nossos nevoeiros.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 29/3/2011)
Foto de : Alberto Guimarães

3 comentários:

  1. O peregrino possui maestria nas impressões sensoriais, captando a beleza real e reinventando-a em suas deliciosas descrições, Voa, voa peregrino. O infinito é vasto pra te abrigar....

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  2. "Entrar no jardim de S.Lázaro de tantas e tão saudosas recordações, sentar-se num banco junto ao lago com o seu nadador de mármore, à sombra das velhas magnólias, eis uma visita que pode ser reconfortante para o portuense—e interessante e bela para o forasteiro. Sem abdicar das vistas sobre o rio Douro, podemos ainda percorrer os socalcos da Quinta das Virtudes ou passar uma tarde no Jardim Botânico descobrindo maravilhas sob a forma de árvores, preciosidades vivas e mágicos recantos que nos lembram a marca romântica que no Porto é epidérmica e constante."
    "Essa observação, que deve incluir as gentes, as falas e as ruas, pode ensinar-nos muito."

    Aprendamos pois, enquanto é tempo...quem sabe até quando ....Como é belo ver crianças brincando no jardim de S. Lázaro e todas essas aves sobrevoando o nosso querido Porto.

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  3. Parabéns ao teu irmão , belíssima foto!

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