1)A crise tem as costas largas. Mais largas são as costas curvadas ao peso da crise. Há qualquer coisa de tristeza e de abatimento que se espalha no nosso «corpo social». Um chumbo de preocupações e arrependimentos, uma incerteza que paralisa e gasta. A desistência da esperança parece tornar-se comum e justificada, enquanto cresce a angústia. Os amanhãs já não cantam, acabou a festa do consumo fácil e barato, foram-se os dias de despreocupação. Os cidadãos tornam-se vultos e os vultos fazem-se silenciosos. Da crise, quase nem se fala nos cafés e nas praças. Para quê? Tudo está dito pelos economistas de faxina nos telejornais e nos debates, e o diagnóstico dos banqueiros do reino, reunidos em conclave, assume-se definitivo. A receita é única, o caminho estreito e sem luzes ao fundo de túnel nenhum. Os mesmos que fomentaram o consumismo desenfreado aparecem agora como juízes e executores das penas dos outros. O Estado que apelou aos gastos para contrariar a depressão vinda da crise dos bancos (dos bancos/mundo) é o mesmo Estado que, salvos os bancos, apresenta à sociedade a factura do resgate.
Viveremos pior e sem ilusões, e sem elas a vida parece não ter já sabor. A irracionalidade do sistema não o torna mais discutível, antes remete sem apelo nem agravo para o «pensamento único».
2) Convocam-se eleições para ouvir a voz do povo na condição de a voz do povo não se fazer ouvir, seguindo docilmente o «único caminho». Os gurus do mercado processam e destilam a sua ideologia, ou «teologia». Todos— excepto eles e os seus patrões— terão de fazer sacrifícios em honra do Deus Milhão, para usar termos dos românticos e já esquecidos anarquistas do século XIX.
Escolher-se-á pelo voto entre opções fundamentalmente iguais, frente e verso da mesma renúncia de pensar. Diz-se que o mundo é assim, que a democracia não pode sobrepor-se aos mercados, que a Europa deixou de ser projecto e ideal e passou a ser uma assembleia de accionistas, que as decisões que nos afectam são tomadas cada vez mais longe, por uns senhores anónimos e sem rosto e alma.
Esta pobreza de opções, esta sensação de caminho estreito e único é a própria crise em acto e definição última.
A origem remota da crise— para além da irresponsabilidade crónica dos que nos governam, ou fingem fazê-lo— pode buscar-se na globalização?
Essa palavra deveria ser-nos cara, a nós portugueses, descobridores da Terra única e patrocinadores de encontros de civilizações. Mas o espírito globalizador de hoje é bem diverso: banca delinquente, capitais mais ou menos lavados, desprezo pelo trabalho e pela natureza, paraísos fiscais e nivelamento por baixo dos padrões sociais, civilizacionais e ambientais.
3) Resistir ao desalento calado que vai vencendo, pode também ser— como me dizia um amigo— limpar a mente com as imagens que a Natureza nos empresta. Outro dia vi o Parque de S.Roque vazio, ao sábado, e tive pena. Durante a semana, os jardins e as praças livres de automóveis, os recantos mais belos da cidade, apenas são frequentados por escasso número de pessoas.
A saúde mental e física de muitos, ganharia com essa redescoberta das pequenas/grandes coisas, que apelam ao pensamento livre, ao silêncio, aos bons sentimentos, mesmo à solidariedade e à compaixão pelos outros e por todas as criaturas---coisas antieconómicas e nada competitivas, entradas em desuso e votadas ao ostracismo.
Sim, podemos pensar melhor e criar momentos não formatados de antemão, nos jardins do Porto e nos jardins do mundo, na companhia amiga dos pássaros e dos livros. Momentos de pausa, contra a crise e contra o discurso oficial da crise.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no JN, em 12/4/2011)
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terça-feira, abril 12, 2011
terça-feira, março 29, 2011
OUTRA CIDADE
A chuva parece querer desmentir a Primavera e os seus sinais, e a cidade carrega-se daquele cinzento azulado e brumoso que lhe empresta expressão e gravidade; mas os renovos das árvores e as pétalas caídas das magnólias falam-nos de outra coisa. A estação do ano abriu as suas portas novas e o tempo bom já não tarda.
Os sinais de Primavera são múltiplos e de entre eles assoma a presença das andorinhas no céu do Porto. O cronista ainda não viu os andorinhões-pretos silvando vertiginosos, mas mais dia, menos dia, eles revelar-se-ão e só o citadino mais distraído não os observará. Os dias mais longos trarão esses e outros regressados de África, heróicos migrantes transcontinentais que se juntarão ao bulício da cidade e aos fins de tarde nervosos e barulhentos do velho burgo.
Os pássaros sedentários, que por cá, mais ou menos persistindo nos locais de sempre, passaram o Inverno, esses agitam-se e ganham outra visibilidade, que pode ser aproveitada pelos amantes da Natureza: o melro negro com o seu canto matinal aflautado e metálico, os pardais ladinos e saltitantes, a rola-turca com o seu belo colar negro e o seu grito característico.
A presença, agora bem notória das aves estivais contrasta com a ausência das invernantes que iniciaram o seu longo voo de regresso a paragens mais nórdicas, entre as quais os estorninhos, os pintassilgos-verdes e muitas aves aquáticas e marinhas que por cá descansaram algum tempo ao longo das praias, nos lagos do Parque da Cidade ou no estuário do Douro.
A energia primaveril impele a uma maior proximidade com a Natureza, sentida como necessidade mesmo pelos urbanos mais empedernidos—e talvez esse apelo leve muitos cidadãos a uma redescoberta da sua cidade.
Entrar no jardim de S.Lázaro de tantas e tão saudosas recordações, sentar-se num banco junto ao lago com o seu nadador de mármore, à sombra das velhas magnólias, eis uma visita que pode ser reconfortante para o portuense—e interessante e bela para o forasteiro. Sem abdicar das vistas sobre o rio Douro, podemos ainda percorrer os socalcos da Quinta das Virtudes ou passar uma tarde no Jardim Botânico descobrindo maravilhas sob a forma de árvores, preciosidades vivas e mágicos recantos que nos lembram a marca romântica que no Porto é epidérmica e constante.
São apenas exemplos de espaços onde a Natureza existe porque a mão humana assim o quis e moldou, um sentimento de pertença e de integração, de harmonia entre a construção e o natural, entre a mineralização e a vegetalização, inserindo essa união no tecido da cidade.
Claro que o exemplo dos fazedores de jardins portuenses, em diferentes épocas, nem sempre foi estimado e um urbanismo desumanizado criou rupturas e distorções que são hoje, factores de mal-estar.
Mas existe uma cidade que é preciso não esquecer, de jardins e de monumentos, de árvores e de flores, de sítios e de memórias, de cultura e de natureza que aguardam o nosso olhar atento. Essa observação, que deve incluir as gentes, as falas e as ruas, pode ensinar-nos muito.
As aves, nas peregrinações do cronista, são como que emblemas de um certo sentimento de cidade. Nesta primavera ainda tímida, o azul transcendente dos pavões do Palácio de Cristal chega para ilustrar a beleza dos mais ricos e valiosos locais da cidade.
Para não esquecer as migrantes, refiro o bando de corvos-marinhos pousados junto à Ponte do Freixo, que uma amiga fotografou— reunidos para o regresso a casa, após uns meses voando entre os nossos nevoeiros.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 29/3/2011)
Foto de : Alberto Guimarães
Os sinais de Primavera são múltiplos e de entre eles assoma a presença das andorinhas no céu do Porto. O cronista ainda não viu os andorinhões-pretos silvando vertiginosos, mas mais dia, menos dia, eles revelar-se-ão e só o citadino mais distraído não os observará. Os dias mais longos trarão esses e outros regressados de África, heróicos migrantes transcontinentais que se juntarão ao bulício da cidade e aos fins de tarde nervosos e barulhentos do velho burgo.
Os pássaros sedentários, que por cá, mais ou menos persistindo nos locais de sempre, passaram o Inverno, esses agitam-se e ganham outra visibilidade, que pode ser aproveitada pelos amantes da Natureza: o melro negro com o seu canto matinal aflautado e metálico, os pardais ladinos e saltitantes, a rola-turca com o seu belo colar negro e o seu grito característico.
A presença, agora bem notória das aves estivais contrasta com a ausência das invernantes que iniciaram o seu longo voo de regresso a paragens mais nórdicas, entre as quais os estorninhos, os pintassilgos-verdes e muitas aves aquáticas e marinhas que por cá descansaram algum tempo ao longo das praias, nos lagos do Parque da Cidade ou no estuário do Douro.
A energia primaveril impele a uma maior proximidade com a Natureza, sentida como necessidade mesmo pelos urbanos mais empedernidos—e talvez esse apelo leve muitos cidadãos a uma redescoberta da sua cidade.
Entrar no jardim de S.Lázaro de tantas e tão saudosas recordações, sentar-se num banco junto ao lago com o seu nadador de mármore, à sombra das velhas magnólias, eis uma visita que pode ser reconfortante para o portuense—e interessante e bela para o forasteiro. Sem abdicar das vistas sobre o rio Douro, podemos ainda percorrer os socalcos da Quinta das Virtudes ou passar uma tarde no Jardim Botânico descobrindo maravilhas sob a forma de árvores, preciosidades vivas e mágicos recantos que nos lembram a marca romântica que no Porto é epidérmica e constante.
São apenas exemplos de espaços onde a Natureza existe porque a mão humana assim o quis e moldou, um sentimento de pertença e de integração, de harmonia entre a construção e o natural, entre a mineralização e a vegetalização, inserindo essa união no tecido da cidade.
Claro que o exemplo dos fazedores de jardins portuenses, em diferentes épocas, nem sempre foi estimado e um urbanismo desumanizado criou rupturas e distorções que são hoje, factores de mal-estar.
Mas existe uma cidade que é preciso não esquecer, de jardins e de monumentos, de árvores e de flores, de sítios e de memórias, de cultura e de natureza que aguardam o nosso olhar atento. Essa observação, que deve incluir as gentes, as falas e as ruas, pode ensinar-nos muito.
As aves, nas peregrinações do cronista, são como que emblemas de um certo sentimento de cidade. Nesta primavera ainda tímida, o azul transcendente dos pavões do Palácio de Cristal chega para ilustrar a beleza dos mais ricos e valiosos locais da cidade.
Para não esquecer as migrantes, refiro o bando de corvos-marinhos pousados junto à Ponte do Freixo, que uma amiga fotografou— reunidos para o regresso a casa, após uns meses voando entre os nossos nevoeiros.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 29/3/2011)
Foto de : Alberto Guimarães
quarta-feira, julho 22, 2009
PALÁCIO DE CRISTAL

O anúncio de requalificação do Pavilhão Rosa Mota/Palácio de Cristal trouxe consigo mais desses desgostos, mesmo se a intenção em si mesma é até de saudar; mas quando se olha para o que está projectado e se situa o que são esboços em papel no terreno preciso que se pretende transformar, verifica-se claramente que há conflito, e não pequeno, entre o previsto edifício novo, anexo ao Pavilhão, e o espaço verde que há cinco décadas lá está.
É que a remodelação do Palácio surge acompanhada da construção de um complexo que ocupará partes do actual jardim, desde o Pavilhão até à Capela de Carlos Alberto, envolvendo o lago que desaparecerá na sua forma actual e criando na prática uma frente de betão num dos mais belos espaços verdes da cidade do Porto.
Diz quem sabe que uma tal construção implicará o corte de árvores, o que aparentemente contradiz as afirmações do arquitecto José Carlos Loureiro, responsável pelo projecto. Mais precisamente 13 árvores de grande porte e considerável interesse botânico e patrimonial. As obras poderão ainda afectar mais 17 árvores de igual importância.
Não sei se o Porto necessita de um centro de congressos e outros eventos, «pólo de atractividade de carácter internacional» (conforme se pode ler na revista da Câmara Municipal.) O que sei é que nada justifica amputar aqueles jardins e ocupá-los com cimento armado.
Esta tendência para, quase em permanência, os poucos espaços verdes de que dispomos serem palco de «inovações» as mais variadas e de diversas proveniências, algumas com motivações sem dúvida positivas mas deslocadas no espaço e na prática desrespeitadoras dos lugares, merece reflexão.
Serão os jardins os únicos locais com área livre e pouco dispendiosa— visto que são propriedade pública— para assentar projectos novos, para instalar equipamentos que faltam, para suprir carências urbanas? Estariam assim relegadas para a categoria pouco nobre de «zonas expectantes» ou quase, cuja função e carácter original poderia ser subvertido ao sabor das ideias e necessidades do momento.
Creio que importa rejeitar esta noção nunca assumida mas aceite e praticada de forma consuetudinária e recorrente.
Talvez fosse bom dotar os jardins, os espaços verdes públicos e os sistemas naturais urbanos de um estatuto que, sem fixar rigidamente uma norma geral de intocabilidade, protegesse essas zonas à luz de um certo «princípio de estabilidade» que vem faltando.
Em matéria de jardins, e mais ainda de jardins históricos, não são precisas muitas surpresas e reclama-se alguma segurança em termos de função, de uso e de integridade paisagística e patrimonial.
Demasiadas vezes temos lastimado intervenções mais ou menos abruptas, mais ou menos modernizadoras, que mais tarde já todos condenam— será preciso lembrar o desastre da Cordoaria?
E o mais curioso é que a Câmara tem vindo até a aprimorar a gestão dos jardins do Palácio, desde o momento em que a sua tutela passou da Porto Lazer para o pelouro do Ambiente, cessando as podas brutais das árvores e melhorando o estado daquele conjunto inestimável.
Ainda há tempo para repensar o projecto e impedir o que seria um desacerto lamentável, um passo na direcção errada.
Bernardino Guimarães
(No Jornal de Notícias de ontem dia 21 de Julho 2009)
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quarta-feira, abril 29, 2009
JARDINS DO PORTO
Mesmo ali ao pé, as bocas grandes do Metro como que sugam vultos apressados. Olha-se para o relógio. Mas o silêncio guardado pelos plátanos mantém-se. Eu sei que esse silêncio, que tantos buscam, é afinal pouco mais do que imaginário – os sons da praça, circundada de trânsito automóvel furioso e imperativo, os gritos e a agitação, não são contidos pelas formas imponentes e altas das árvores, senão parcialmente; e a calma que se vive dentro do pequeno jardim urbano deve fazer parte de um acordo tácito, subscrito pelos que o frequentam, concordando em sentir o silêncio mesmo que os sons exteriores estejam bem presentes. De que outra forma se poderia viver aqueles momentos de refúgio? Ignorando a fragilidade do diminuto e problemático paraíso, torna-se possível sentir a sua frescura e o seu acolhimento. Pensar que tudo de mau e de feio se suspende durante aqueles tempos perdidos.
Os jardins imitam a natureza, como a vida, por vezes imita a arte? Ou recriam natureza como os homens gostariam que ela fosse? Mais geométricos e racionais, mais intimistas e sonhadores, mais ciência ou mais recreio, são estes espaços cada vez mais reclamados. Mas quem os frequenta? Ao cruzarmos o jardim no meio de uma manhã atarefada, dir-se-ia que os presentes são, na maioria talvez, parte daqueles «segmentos» que a cidade pior trata, idosos impávidos, estrangeiros tristes, solitários absortos. E pobres, que os há em profusão e cada vez mais, desgraçadamente. Aquele refúgio, ao menos aquele, entre monumentos vegetais e uma calma precária, pertence-lhes. Fazem dele o seu «campus», a sua vitrina, o seu passeio sem fama.
Bem diferente dos grandes parques urbanos, onde a afluência é mais variada e se pratica desporto ou se corre a passo contado antes de um dia de trabalho. Aí o paraíso é mais próximo da natureza idealizada, e o «stress» é o demónio que se exorciza. Nos pequenos jardins da cidade, que pensarão sobre «stress» os excluídos da sorte e os esquecidos do tempo?
Claro que os jardins podem também ser do saber: quem direccionar o olhar e usar da atenção, pode encontrar árvores notáveis, procurar cedros do Himalaia e do Atlas, sequóias e ginkgos nesses oásis do Porto, ou olhar para estátuas frias e românticas, coretos que já foram festivos. Ou até aprender botânica simples, ver coisas ínfimas e fascinantes, musgos, fetos, pinhas, flores, folhas, interessar-se pelas aves que por lá pousam, o melro negro, a rola turca de colar, o pisco-de-peito-ruivo tímido. Na manhã a que me reporto, a Praça do Marquês abrigava pessoas em busca de silêncio. Atravessar o jardim para alcançar outro lugar pareceu-me quase um sacrilégio. Os plátanos antigos, mesmo mutilados e maltratados como foram no passado recente, guardavam tudo aquilo, inventando um silêncio vegetal, bálsamo na manhã afogueada da metrópole.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 28/4/2009)
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