terça-feira, abril 12, 2011

CONSIDERAÇÕES MELANCÓLICAS

1)A crise tem as costas largas. Mais largas são as costas curvadas ao peso da crise. Há qualquer coisa de tristeza e de abatimento que se espalha no nosso «corpo social». Um chumbo de preocupações e arrependimentos, uma incerteza que paralisa e gasta. A desistência da esperança parece tornar-se comum e justificada, enquanto cresce a angústia. Os amanhãs já não cantam, acabou a festa do consumo fácil e barato, foram-se os dias de despreocupação. Os cidadãos tornam-se vultos e os vultos fazem-se silenciosos. Da crise, quase nem se fala nos cafés e nas praças. Para quê? Tudo está dito pelos economistas de faxina nos telejornais e nos debates, e o diagnóstico dos banqueiros do reino, reunidos em conclave, assume-se definitivo. A receita é única, o caminho estreito e sem luzes ao fundo de túnel nenhum. Os mesmos que fomentaram o consumismo desenfreado aparecem agora como juízes e executores das penas dos outros. O Estado que apelou aos gastos para contrariar a depressão vinda da crise dos bancos (dos bancos/mundo) é o mesmo Estado que, salvos os bancos, apresenta à sociedade a factura do resgate.
Viveremos pior e sem ilusões, e sem elas a vida parece não ter já sabor. A irracionalidade do sistema não o torna mais discutível, antes remete sem apelo nem agravo para o «pensamento único».

2) Convocam-se eleições para ouvir a voz do povo na condição de a voz do povo não se fazer ouvir, seguindo docilmente o «único caminho». Os gurus do mercado processam e destilam a sua ideologia, ou «teologia». Todos— excepto eles e os seus patrões— terão de fazer sacrifícios em honra do Deus Milhão, para usar termos dos românticos e já esquecidos anarquistas do século XIX.
Escolher-se-á pelo voto entre opções fundamentalmente iguais, frente e verso da mesma renúncia de pensar. Diz-se que o mundo é assim, que a democracia não pode sobrepor-se aos mercados, que a Europa deixou de ser projecto e ideal e passou a ser uma assembleia de accionistas, que as decisões que nos afectam são tomadas cada vez mais longe, por uns senhores anónimos e sem rosto e alma.
Esta pobreza de opções, esta sensação de caminho estreito e único é a própria crise em acto e definição última.
A origem remota da crise— para além da irresponsabilidade crónica dos que nos governam, ou fingem fazê-lo— pode buscar-se na globalização?
Essa palavra deveria ser-nos cara, a nós portugueses, descobridores da Terra única e patrocinadores de encontros de civilizações. Mas o espírito globalizador de hoje é bem diverso: banca delinquente, capitais mais ou menos lavados, desprezo pelo trabalho e pela natureza, paraísos fiscais e nivelamento por baixo dos padrões sociais, civilizacionais e ambientais.

3) Resistir ao desalento calado que vai vencendo, pode também ser— como me dizia um amigo— limpar a mente com as imagens que a Natureza nos empresta. Outro dia vi o Parque de S.Roque vazio, ao sábado, e tive pena. Durante a semana, os jardins e as praças livres de automóveis, os recantos mais belos da cidade, apenas são frequentados por escasso número de pessoas.
A saúde mental e física de muitos, ganharia com essa redescoberta das pequenas/grandes coisas, que apelam ao pensamento livre, ao silêncio, aos bons sentimentos, mesmo à solidariedade e à compaixão pelos outros e por todas as criaturas---coisas antieconómicas e nada competitivas, entradas em desuso e votadas ao ostracismo.
Sim, podemos pensar melhor e criar momentos não formatados de antemão, nos jardins do Porto e nos jardins do mundo, na companhia amiga dos pássaros e dos livros. Momentos de pausa, contra a crise e contra o discurso oficial da crise.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no JN, em 12/4/2011)

3 comentários:

  1. Excelente!!!De fácil compreenção,dinamica,gostosa de ler...Com uma refinada ironia,cortante como navalha,como deve ser.Dá a exata dimensão da crise,principalmente para quem,como eu,está longe.E ao final,tem uma docilidade,característica do autor.

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  2. Bela crônica B. A produção em função do máximo lucro com usos de tecnologias sofistocadas, independente de seu impacto social e ambiental; alto endividamento público; totalitarismo do mercado,ao meu ver ainda não é nada perto da crise de sentido da vida. A mercantilização das pessoas e da religião, o divórcio entre o mundo humano e a mãe natureza a ponto de colocar em risco a vida no planeta, o culto ao ego, isso é imensamente triste. O racional seria uma economia solidária. Q o caos desse bloqueio cultural, não prive a vida de nossos netos...

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  3. A saúde mental e física de muitos, ganharia com essa redescoberta das pequenas/grandes coisas, que apelam ao pensamento livre, ao silêncio, aos bons sentimentos, mesmo à solidariedade e à compaixão pelos outros e por todas as criaturas---coisas antieconómicas e nada competitivas, entradas em desuso e votadas ao ostracismo.
    Sim, podemos pensar melhor e criar momentos não formatados de antemão, nos jardins do Porto e nos jardins do mundo, na companhia amiga dos pássaros e dos livros. Momentos de pausa, contra a crise e contra o discurso oficial da crise.

    Excelente!!!como a vida seria bem melhor....tanta ganância...para quê?

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