quarta-feira, abril 29, 2009

JARDINS DO PORTO

Os plátanos alinhados em formação densa, criam o refúgio. Meio da manhã, tudo arde em volta num bulício sonoro, e ali dentro parece que nada mexe. Teatro de sombras. Duas ou três figuras esquivas passam, outras detêm-se junto ao coreto. Nos bancos, como que num transporte público que não vai a lado nenhum, sentam-se velhos, imigrantes de gestos lentos, pessoas de olhar fixo em algum ponto que não vemos. Esperam o quê? Nem os pombos agitam demasiado o cenário, excepto de tempos a tempos, em revoada colectiva, pousando junto ao que foi uma pequena biblioteca de jardim e agora não sei o que seja.
Mesmo ali ao pé, as bocas grandes do Metro como que sugam vultos apressados. Olha-se para o relógio. Mas o silêncio guardado pelos plátanos mantém-se. Eu sei que esse silêncio, que tantos buscam, é afinal pouco mais do que imaginário – os sons da praça, circundada de trânsito automóvel furioso e imperativo, os gritos e a agitação, não são contidos pelas formas imponentes e altas das árvores, senão parcialmente; e a calma que se vive dentro do pequeno jardim urbano deve fazer parte de um acordo tácito, subscrito pelos que o frequentam, concordando em sentir o silêncio mesmo que os sons exteriores estejam bem presentes. De que outra forma se poderia viver aqueles momentos de refúgio? Ignorando a fragilidade do diminuto e problemático paraíso, torna-se possível sentir a sua frescura e o seu acolhimento. Pensar que tudo de mau e de feio se suspende durante aqueles tempos perdidos.
Os jardins imitam a natureza, como a vida, por vezes imita a arte? Ou recriam natureza como os homens gostariam que ela fosse? Mais geométricos e racionais, mais intimistas e sonhadores, mais ciência ou mais recreio, são estes espaços cada vez mais reclamados. Mas quem os frequenta? Ao cruzarmos o jardim no meio de uma manhã atarefada, dir-se-ia que os presentes são, na maioria talvez, parte daqueles «segmentos» que a cidade pior trata, idosos impávidos, estrangeiros tristes, solitários absortos. E pobres, que os há em profusão e cada vez mais, desgraçadamente. Aquele refúgio, ao menos aquele, entre monumentos vegetais e uma calma precária, pertence-lhes. Fazem dele o seu «campus», a sua vitrina, o seu passeio sem fama.
Bem diferente dos grandes parques urbanos, onde a afluência é mais variada e se pratica desporto ou se corre a passo contado antes de um dia de trabalho. Aí o paraíso é mais próximo da natureza idealizada, e o «stress» é o demónio que se exorciza. Nos pequenos jardins da cidade, que pensarão sobre «stress» os excluídos da sorte e os esquecidos do tempo?
Claro que os jardins podem também ser do saber: quem direccionar o olhar e usar da atenção, pode encontrar árvores notáveis, procurar cedros do Himalaia e do Atlas, sequóias e ginkgos nesses oásis do Porto, ou olhar para estátuas frias e românticas, coretos que já foram festivos. Ou até aprender botânica simples, ver coisas ínfimas e fascinantes, musgos, fetos, pinhas, flores, folhas, interessar-se pelas aves que por lá pousam, o melro negro, a rola turca de colar, o pisco-de-peito-ruivo tímido. Na manhã a que me reporto, a Praça do Marquês abrigava pessoas em busca de silêncio. Atravessar o jardim para alcançar outro lugar pareceu-me quase um sacrilégio. Os plátanos antigos, mesmo mutilados e maltratados como foram no passado recente, guardavam tudo aquilo, inventando um silêncio vegetal, bálsamo na manhã afogueada da metrópole.
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 28/4/2009)

2 comentários:

  1. Felizmente ainda existem muitos e fascinantes!
    Que a Campo Aberto , continue a lutar pela sua manutenção .

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  2. Atravessaria o Atlântico para ver esse silêncio guardado pelos plátanos...e quem sabe nesse refúgio teria a sorte de ver o poeta passar...
    Não se tem mais o costume de observar o simples cotidiano com sensibilidade e respeito por sua história...
    Belos Jardins do Porto...

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