sexta-feira, junho 26, 2009

RECORDAÇÃO DE JOAQUIM VIEIRA NATIVIDADE

Completaram-se em 2008 os 40 anos desde a morte de um homem, Joaquim Vieira Natividade, cuja notável carreira de agrónomo e silvicultor deixou marcas indeléveis no conhecimento da floresta portuguesa e em particular do montado de sobro. Os sobreiros foram um dos objectos de estudo— e de paixão—de Natividade, que a essas árvores dedicou longos anos de trabalho e de investigação.
A extraordinária riqueza natural e económica dos nossos montados era já na altura reconhecida, sem dúvida. Mas faltavam os instrumentos científicos complexos que permitissem a sua adequada gestão. É a Joaquim Natividade que se ficou a dever esse impulso de indagação e experimentação que nos legou saberes que ainda hoje tomam lugar de referência incontornável para todos os que se interessam pelo montado, pelo sobreiro e pelo mais conhecido dos produtos que nos fornece: a cortiça, uma mais valia que a economia nacional contabiliza mas que práticas desajustadas e insensatas, movidas pela ignorância, podem colocar em risco.
Joaquim Natividade, ao longo de uma longa e singularmente produtiva vida de trabalho, publicou cerca de 300 obras, entre livros, artigos e comunicações científicas, espelhando o seu labor como arboricultor e silvicultor, muito longe da figura do teórico que mal conhece o terreno onde viceja o objecto do seu estudo. Natividade parte sempre do saber de experiência feito e da observação metódica, minuciosa daquilo que investiga. O seu livro «Subericultura» (publicado em 1950) ainda hoje avulta como ponto de referência para os investigadores e meros curiosos. Apesar de a sua obra, no conjunto, não ter sido ao longo do tempo reconhecida e divulgada como deveria ser, o facto é que ninguém pode abordar o sobreiro em Portugal, de forma rigorosa e com bases sólidas sem a consulta de «Subericultura» que aliás foi traduzida em várias línguas e ainda recentemente foi objecto de mais uma edição espanhola.
Joaquim Vieira Natividade preocupava-se com a degradação dos montados, e com as práticas que afectavam os belos conjuntos destes carvalhos: escreveu em 1942: «O processo por que se explora a árvore é único em silvicultura. Despoja-a o Homem de parte desse invólucro suberoso; põe a descoberto tecidos vivos, sem condições de resistência à agressividade do ambiente; destrói as próprias células geradoras de cortiça; e pouco depois, em regiões mais internas do líber, outro câmbio suberoso-felodérmico se forma, e novo invólucro suberoso é regenerado. (…) «A própria mobilização do solo, na aparência benéfica, tem, para a árvore, consequências imprevistas: porque maior agora a produção suberosa, eleva o homem a superfície de descortiçamento, impõe-lhe mais duro trabalho e torna mais agudas as crises por que tem o sobreiro que passar. Dos préstimos da valiosa espécie provêm os seus infortúnios. Dá cortiça e dá carvão; e o subericultor mutila-a barbaramente para obter o maior rendimento lenhoso, despe-a sem piedade para colher mais produção suberosa. Nenhuma outra espécie vegetal é vítima de tantas e tão abomináveis maquinações e torturas.»

Tem ainda hoje interesse a forma como o autor caracterizava o montado:

«O montado, nem é floresta, nem é pomar; constitui perigoso meio-termo que se mantém economicamente de pé enquanto os recursos do solo de todo não se esgotarem e a árvore suportar os vandalismos de uma exploração excessiva. (…) «Montado é portanto, um meio-termo entre floresta e pomar. Não possui o equilíbrio natural daquela, nem o equilíbrio artificial deste. É um edifício que o tempo arruína como frágil construção antinatural.»

Natividade dedicou boa parte da sua vida procurando alcançar soluções viáveis para estes dilemas, obtendo como resultado conhecimentos que estão hoje ao dispor que quem queira conciliar conservação dos montados e exploração económica a que hoje chamaríamos «sustentável.»
Esse perfil de precursor, esse esforço de levar mais longe o que se sabe e o que se faz com o que se sabe, faz de Vieira Natividade uma grande figura, não apenas científica, --marcando uma impressiva obra perene--mas igualmente com lugar entre aqueles maiores que sonharam com um aproveitamento mais racional dos recursos naturais, garantindo a sua existência pujante no futuro.

Joaquim Vieira Natividade nasceu a 22 de Novembro de 1899, em Alcobaça, no seio de uma família com raízes rurais e agrícolas.
Da sua carreira, de tão vasta em realizações e distinções, é difícil resumir e seleccionar factos importantes: em 1930 ingressou na Direcção Geral dos Serviços florestais e Aquícolas, tendo ainda nesse ano tomado posse como director da Estação Experimental do Sobreiro e do Eucalipto, cuja sede passou a ser na sua cidade natal, Alcobaça.
Em 1933 foi admitido «por mérito absoluto» como professor catedrático no ISA— Instituto Superior de Agronomia. Foi investigador e director do Departamento de Pomologia da Estação Agronómica Nacional. Em 1947 foi incumbido de elaborar o «Plano de Fruticultura da Ilha da Madeira.»
Em 1950 elaborou, a pedido da FAO, o «Plano para o Futuro e Defesa da Subericultura Mediterrânea» depois adoptado como programa de trabalho por aquela organização das Nações unidas.
Faleceu a 19 de Novembro de 1968, em Alcobaça.
Vale a pena lembrar um livrinho seu, «O Culto da Natureza» (publicado em 1976 pela Secretaria de Estado do Ambiente, era titular da mesma o Professor Gomes Guerreiro, outra grande figura do ambientalismo português.
Nessa pequena mas fascinante obra pode ler-se, sintetizando talvez o pensamento de Natividade:

«Só a admiração comovida pelos valores eternos, pelos bens supremos do espírito que são a fonte inexaurível das verdadeiras riquezas, pode alimentar os ideais de justiça, de generosidade e de amor. Só a existência de um ideal superior de beleza pode criar o desprezo pelo que é falso, reles, efémero, fugaz, por tudo o que perverte, embrutece e dissolve.
O mundo da beleza não é ainda o refúgio das almas tímidas e desiludidas, um retiro de vencidos, entregues ao devaneio estático e estéril. É a forja onde se retemperam as almas para as nobres lutas da vida, e de onde brotará o estímulo para se realizar a tarefa enorme de fazer as sociedades um pouco mais justas, e de tornar mais fortes os débeis laços da solidariedade humana.
(…) Foi Tolstoi quem escreveu que a beleza é na sua essência a vida, e essa beleza reside decerto no indecifrável mistério que encerra, nos seus desígnios inalteráveis e incompreensíveis.
Na vida vegetal, prolonga-se a alarga-se o drama e o mistério da nossa própria vida.»
(…) Num país castigado por uma ardente canícula, dir-se-ia que temos horror à sombra, onde se pediam arvoredos frondosos e acolhedores, o ninho de um oásis a suavizar as inclemências do estio, fizemos terreiros imensos, cruamente ensoalheirados e inóspitos, quando tantos dos nossos monumentos lucrariam com uma nobre moldura vegetal que acarinhasse e aquecesse a frieza da pedra ou por vezes quebrasse, com a cortina da folhagem, a monotonia das grandes massas arquitectónicas e num ou noutro caso escondesse até a sua real pobreza; quando a presença da árvore exaltaria o poder evocador e o poético encanto que emana de tantas ruínas, como é o caso dos templos perdidos nos bosques sagrados da Grécia— nós, pela calada, metodicamente, cinicamente, fomos degolando, mutilando, rapando tudo o que tivesse jeito de árvore para não prejudicar as «vistas», tal como faria qualquer ricaço de letras gordas aos empecilhos que ofuscassem ou escondessem os arrebiques pelintras do seu «chalet». O que haveria a dizer sobre as grandezas e misérias da árvore nas cidades e vilas de Portugal!»
Texto bem actual, legado que não devemos esquecer!
Bernardino Guimarães

1 comentário:

  1. O mundo da beleza não é ainda o refúgio das almas tímidas e desiludidas, um retiro de vencidos, entregues ao devaneio estático e estéril. É a forja onde se retemperam as almas para as nobres lutas da vida, e de onde brotará o estímulo para se realizar a tarefa enorme de fazer as sociedades um pouco mais justas, e de tornar mais fortes os débeis laços da solidariedade humana.

    Nada como a beleza na Natureza, animal ou vegetal!

    ..na vida vegetal, prolonga-se a alarga-se o drama e o mistério da nossa própria vida.»

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