sexta-feira, abril 02, 2010

ENCOSTEI-ME PARA TRÁS NA CADEIRA DO CONVÉS

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y’s de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o
Compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

                     Álvaro de Campos

2 comentários:

  1. Ah, todo eu anseio
    Por esse momento sem importância nenhuma
    Na minha vida,
    Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
    Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
    Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o
    Compreender
    E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

    Sim, por vezes não soube compreender!Mas estamos sempre a tempo de o fazer!

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  2. Caro Peregrino...
    Lindo poema... um dos melhores heterônimo de Fernando Pessoa.
    ""Campos é o “filho indisciplinado da sensação e para ele a sensação é tudo. O sensacionismo faz da sensação a realidade da vida e a base da arte. O eu do poeta Fernando Pessoa tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir.""
    A vida imita a arte sempre...
    Mesmo que pareca mais um turbilhão de sentimentos... eu acredito que se há luar e mar, pode não haver solidão... basta acreditar.

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