quinta-feira, maio 27, 2010

OS LOBOS


Há poucos dias, lia um artigo de um analista das andanças financeiras e dos desconcertos bolsistas. A páginas tantas, comentava ele o ataque dos «mercados» às pobres economias de alguns países debilitados e em concreto aos activos da nossa pesada dívida «soberana». E saía-se com esta: «temos consciência de que estamos a ser atacados por lobos. Alcateias implacáveis, atentas a qualquer debilidade da presa.» A coisa não deve ter passado de uma muleta discursiva, alegórica e ilustrativa do que pretendia significar o articulista. Mas não pude deixar de pensar: pobres lobos! Logo eles— que também não percebem nada de finanças— haveriam de ser trazidos à liça das grandes investidas dos fundos mobiliários e dos consórcios globais. Admirador confesso dos lobos, nunca me apercebi da existência de off-shores entre eles, e as alcateias em regra não escondem o jogo nem dissimulam os avanços quando se joga a captura de uma presa.

Mas esta ideia é antiga, muito antiga. Aquilo que na natureza humana nos repugna e entristece, costumamos atribui-lo aos lobos, melhor, a qualquer coisa de lobo que em nós residiria e que deveríamos expulsar. As lendas e os mitos povoam a nossa relação com o lobo, como se este fosse a expressão mais pura e primordial da natureza selvagem e daí, entrasse na nossa alma como um espírito impuro. A perseguição que desde sempre se moveu contra o grande predador do Hemisfério Norte tem aí as suas raízes. Claro que as alcateias foram competidoras do homem primitivo. Dos seus abrigos ancestrais, os nossos antepassados devem ter admirado a inteligência, a cooperação na caça entre os membros da alcateia e até temido os seus uivos nocturnos, sinais de uma espécie comunicante. Caçadores de grupo também, os humanos foram misturando medo, pasmo e admiração à sua contemplação destes animais. E nem sempre a relação foi de ódio, porque de lobos domesticados nasceram os cães, prova maior da importância do legado das alcateias à vida dos homens.
Mito é o nada que é tudo, disse o poeta. Roma, na lenda, foi fundada por dois irmãos, Rómulo e Remo, que apesar de descendentes de Marte e de Réia, foram abandonados numa jangada no rio Tibre e adoptados e criados por uma loba. Depois a história segue com a morte de Remo às mãos do irmão. Coisa de lobos? Não, coisa de homens.
Os humanos não são maus ou perversos ou gananciosos por se parecerem com lobos. São dessa forma porque a humanidade incorpora essas facetas lamentáveis. E as guerras pelo dinheiro e poder não fazem parte do universo lupino— mas sim do nosso!
O seu a seu dono. Saibamos defender o lobo do homem que o condena à extinção, o mesmo homem que é «lobo do homem» sem que se aperceba que o lobo não faz sequer parte dessa história. Somos, infelizmente, bem capazes de o ser sem usurparmos o nome do magnífico predador.
Bernardino Guimarães
(Crónica para Antena 1, 27/5/010)

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