quarta-feira, maio 09, 2012
segunda-feira, maio 07, 2012
sexta-feira, julho 01, 2011
AO LADO DO HOMEM VOU CRESCENDO
Ao lado do homem vou crescendo
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
...
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.
Alexandre O`Neill
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
...
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.
Alexandre O`Neill
JACARANDÁ
Na minha rua, como em algumas outras ruas do Porto, floresceu um jacarandá. Explosão de cor, festa das cores. Azul e violeta, roxo. As flores são pequenos sinos de azul e aparecem tardiamente, entrando brilhantes neste belo mês de Junho, quando bate mais forte o coração da cidade.
As variações de luz, a intensidade maior ou menor dos raios solares, a chuva leve que amiúde cai, tudo isso altera a coloração do jacarandá, como se quisesse exibir não apenas esplendor, mas versatilidade. E o tempo, sempre o tempo, vai diminuindo a frescura e a profusão das flores, até que desaparecem, como se um meteorito lilás e veloz ali tivesse passado.
Não há muitos jacarandás no Porto, mas nota-se o esforço de plantação destes espécimes nos últimos anos, atenção do município que a cidade agradece.
Vale a pena lembrar o jacarandá solitário e monumental, de provecta idade, ali no Largo do Viriato e que morreu há pouco tempo, para consternação dos seus muitos admiradores quotidianos.
As árvores são um elemento fundamental na ligação urbana entre cultura e natureza, entre cidade e natureza. Pode dizer-se que uma prática ambiental avisada, em qualquer grande cidade, começa pela atenção e cuidados com a árvore urbana. E uma de duas: ou bem que queremos que sejam mais e mais saudáveis as árvores citadinas, ou bem que não. Esta última opção revela-se sempre desastrosa. Há um fortíssimo princípio estético, ou se quisermos, decorativo e harmonizador que depende da existência de árvores. As cidades não podem prescindir desse capital de formosura e de equilíbrio. O elemento visual é porém apenas um dos factores a ter em conta.
Alguém disse um dia que, ainda que soubesse, de ciência certa, que o mundo iria acabar amanhã, continuaria plantando árvores. Isto para realçar que há na estima que se dedica à árvore uma espécie de enaltecimento da esperança. Estes seres únicos fincam-se na terra mas apontam o infinito. Radicam no solo de uma pequena nesga de terra mas é o longe que sugerem. Dada a sua relativa longevidade, simbolizam também a vitória sobre o tempo, a perenidade num mundo que vive o efémero e verifica a impermanência. Daí que uma política para as árvores---coração de uma política ambiental urbana— possa ser entendida como um «pacto entre gerações» --para lá dos impulsos dos dias que correm.
Árvores lembram-nos a necessidade de cuidarmos e gerirmos bem o espaço urbano, para que ele seja acolhedor para todos os que na cidade habitam e trabalham. Uma cidade com mais natureza é uma cidade mais humana e nesta afirmação se nega o dualismo que ainda faz a chuva e o bom tempo nos urbanismos esquemáticos.
Ameaçadas estão sempre as árvores— aprisionadas em caldeiras exíguas, vegetando em passeios de pedra ou no meio do asfalto, sem espaço, sem ar, manietadas e poluídas.
As podas regulares são talvez a agressão mais estúpida e maléfica— embora hoje as câmaras municipais estejam mais conscientes desse facto e evitem cada vez mais o arboricídio «bem intencionado» e ignorante, não faltam particulares retomando a malvada e inútil tradição.
Outros perigos: a má escolha das espécies, pouco adequadas ao local para onde se destinam. As obras na via pública, valas e outras, nas imediações de árvores, que ferem e mutilam as raízes ou impermeabilizam o solo em volta. Ultimamente, a moda dos relvados trouxe consigo a rega excessiva, desperdício de água que afecta as árvores presentes, encharcando-as até à asfixia radicular e ao apodrecimento. Para não falar do puro vandalismo!
Vida dura, a das árvores. Mas as cores do jacarandá em Junho bradam um azul transcendente, resistente, poesia vegetal na rua congestionada.
Bernardino Guimarães
Junho 2011
As variações de luz, a intensidade maior ou menor dos raios solares, a chuva leve que amiúde cai, tudo isso altera a coloração do jacarandá, como se quisesse exibir não apenas esplendor, mas versatilidade. E o tempo, sempre o tempo, vai diminuindo a frescura e a profusão das flores, até que desaparecem, como se um meteorito lilás e veloz ali tivesse passado.
Não há muitos jacarandás no Porto, mas nota-se o esforço de plantação destes espécimes nos últimos anos, atenção do município que a cidade agradece.
Vale a pena lembrar o jacarandá solitário e monumental, de provecta idade, ali no Largo do Viriato e que morreu há pouco tempo, para consternação dos seus muitos admiradores quotidianos.
As árvores são um elemento fundamental na ligação urbana entre cultura e natureza, entre cidade e natureza. Pode dizer-se que uma prática ambiental avisada, em qualquer grande cidade, começa pela atenção e cuidados com a árvore urbana. E uma de duas: ou bem que queremos que sejam mais e mais saudáveis as árvores citadinas, ou bem que não. Esta última opção revela-se sempre desastrosa. Há um fortíssimo princípio estético, ou se quisermos, decorativo e harmonizador que depende da existência de árvores. As cidades não podem prescindir desse capital de formosura e de equilíbrio. O elemento visual é porém apenas um dos factores a ter em conta.
Alguém disse um dia que, ainda que soubesse, de ciência certa, que o mundo iria acabar amanhã, continuaria plantando árvores. Isto para realçar que há na estima que se dedica à árvore uma espécie de enaltecimento da esperança. Estes seres únicos fincam-se na terra mas apontam o infinito. Radicam no solo de uma pequena nesga de terra mas é o longe que sugerem. Dada a sua relativa longevidade, simbolizam também a vitória sobre o tempo, a perenidade num mundo que vive o efémero e verifica a impermanência. Daí que uma política para as árvores---coração de uma política ambiental urbana— possa ser entendida como um «pacto entre gerações» --para lá dos impulsos dos dias que correm.
Árvores lembram-nos a necessidade de cuidarmos e gerirmos bem o espaço urbano, para que ele seja acolhedor para todos os que na cidade habitam e trabalham. Uma cidade com mais natureza é uma cidade mais humana e nesta afirmação se nega o dualismo que ainda faz a chuva e o bom tempo nos urbanismos esquemáticos.
Ameaçadas estão sempre as árvores— aprisionadas em caldeiras exíguas, vegetando em passeios de pedra ou no meio do asfalto, sem espaço, sem ar, manietadas e poluídas.
As podas regulares são talvez a agressão mais estúpida e maléfica— embora hoje as câmaras municipais estejam mais conscientes desse facto e evitem cada vez mais o arboricídio «bem intencionado» e ignorante, não faltam particulares retomando a malvada e inútil tradição.
Outros perigos: a má escolha das espécies, pouco adequadas ao local para onde se destinam. As obras na via pública, valas e outras, nas imediações de árvores, que ferem e mutilam as raízes ou impermeabilizam o solo em volta. Ultimamente, a moda dos relvados trouxe consigo a rega excessiva, desperdício de água que afecta as árvores presentes, encharcando-as até à asfixia radicular e ao apodrecimento. Para não falar do puro vandalismo!
Vida dura, a das árvores. Mas as cores do jacarandá em Junho bradam um azul transcendente, resistente, poesia vegetal na rua congestionada.
Bernardino Guimarães
Junho 2011
Etiquetas:
arboricídio,
árvores urbanas,
biodiversidade,
ecologia urbana,
jacarandá
quinta-feira, junho 09, 2011
TENHO TANTO SENTIMENTO
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
......Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Fernando Pessoa
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
......Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Fernando Pessoa
segunda-feira, junho 06, 2011
ELEIÇÕES SEM AMBIENTE
Alguns leitores terão reparado que, durante a campanha eleitoral, pouco ou nada se falou em Ambiente ou em qualquer dos temas que se prendem com a «crise ambiental» ou ecológica que, no entanto, não deixaram de existir nem diminuíram de importância ou gravidade. Que os partidos políticos de maior expressão— com raras e ocasionais excepções— tenham ignorado a dimensão ecológica dos nossos problemas, já é motivo de espanto. Mas se pensarmos que esses mesmos partidos formatam o seu discurso e decisões ao que pensam ser as preocupações dos seus eleitores potenciais, e às suas preferências e «agenda», então é difícil não concluir que a sociedade portuguesa vê com relativa indiferença esse alheamento político. E isso sim, dá-nos que pensar. Se o ambiente abonasse muitos votos, com certeza os partidos políticos e os técnicos de comunicação que os aconselham encontrariam resposta para um «segmento» eleitoral apetitoso.
Mas se é como se viu, então que tem sido feita de tanta «sensibilização» ambiental, e como se entende a difusão, cada vez mais ampla, da consciência alertada para o esgotamento de recursos, para a destruição da paisagem, da biodiversidade, para a contaminação dos rios e do mar, para o desordenamento do território, para as mudanças do clima induzidas pela poluição que expedimos para a atmosfera? Tudo terá ficado submerso nas ondas da crise económica e nas receitas para a vencer. Chegado o país à curva apertada da História onde se atolou, com trauma de perda progressiva de soberania e autonomia de decisões graças ao peso insuportável da dívida, os cidadãos centraram-se nas preocupações imediatas e urgentes— tantas vezes preocupações de sobrevivência.
Só que um pouco de debate e de aprofundamento, indo à raiz dos problemas (é esse o bom sentido da palavra «radical») ---não deixaria de pôr a nu as misérias do modelo de desenvolvimento que escolhemos e promovemos durante largos anos. Talvez devesse ser o tema central de qualquer discussão sobre as causas e as saídas possíveis para a crise. Esse modelo assentou no betão, (não é lugar comum!) entre obras públicas mais ou menos faraónicas e um incentivo brutal (e doentio) à construção e imobiliário, impulsionado pelos juros baixos, pela apelo generalizado à aquisição de casa própria, com a morte anunciada do mercado de arrendamento e o abandono dos centros tradicionais das cidades. Alguém dizia que boa parte da crise financeira nacional se deveu a uma «bolha imobiliária», mais discreta mas não menos séria do que a espanhola.
O abandono da terra, a ausência de políticas para o mundo rural e suas actividades, a ruína da floresta, a expansão desenfreada dos subúrbios citadinos, são outras facetas desse modelo «torto».
Pensou-se que «desenvolver» seria tudo atravessar por auto-estradas, que progredir seria incentivar o consumo que endivida e fragiliza o futuro.
Não permite a crónica mais considerações sobre matérias que dariam pano para mangas. Mas fica a urgência de reflexão sobre que país queremos, que projecto nacional desejamos, a que Europa ambicionamos pertencer.
O modelo de desenvolvimento envolve ambiente e sociedade, envolve economia e ecologia, cultura e natureza. A menos que nos conformemos com as receitas tecnocráticas da «troika» e pensemos ver nessas medidas mais do que um aflitivamente necessário «acerto de contas» com resultados aliás bastante duvidosos.
Pouco disto esteve presente nas eleições, com evidente empobrecimento do debate político. Mesmo tendo ontem sido dia de escolhas políticas e também Dia Mundial do Ambiente. Ironia subtil do calendário!
Bernardino Guimarães
Mas se é como se viu, então que tem sido feita de tanta «sensibilização» ambiental, e como se entende a difusão, cada vez mais ampla, da consciência alertada para o esgotamento de recursos, para a destruição da paisagem, da biodiversidade, para a contaminação dos rios e do mar, para o desordenamento do território, para as mudanças do clima induzidas pela poluição que expedimos para a atmosfera? Tudo terá ficado submerso nas ondas da crise económica e nas receitas para a vencer. Chegado o país à curva apertada da História onde se atolou, com trauma de perda progressiva de soberania e autonomia de decisões graças ao peso insuportável da dívida, os cidadãos centraram-se nas preocupações imediatas e urgentes— tantas vezes preocupações de sobrevivência.
Só que um pouco de debate e de aprofundamento, indo à raiz dos problemas (é esse o bom sentido da palavra «radical») ---não deixaria de pôr a nu as misérias do modelo de desenvolvimento que escolhemos e promovemos durante largos anos. Talvez devesse ser o tema central de qualquer discussão sobre as causas e as saídas possíveis para a crise. Esse modelo assentou no betão, (não é lugar comum!) entre obras públicas mais ou menos faraónicas e um incentivo brutal (e doentio) à construção e imobiliário, impulsionado pelos juros baixos, pela apelo generalizado à aquisição de casa própria, com a morte anunciada do mercado de arrendamento e o abandono dos centros tradicionais das cidades. Alguém dizia que boa parte da crise financeira nacional se deveu a uma «bolha imobiliária», mais discreta mas não menos séria do que a espanhola.
O abandono da terra, a ausência de políticas para o mundo rural e suas actividades, a ruína da floresta, a expansão desenfreada dos subúrbios citadinos, são outras facetas desse modelo «torto».
Pensou-se que «desenvolver» seria tudo atravessar por auto-estradas, que progredir seria incentivar o consumo que endivida e fragiliza o futuro.
Não permite a crónica mais considerações sobre matérias que dariam pano para mangas. Mas fica a urgência de reflexão sobre que país queremos, que projecto nacional desejamos, a que Europa ambicionamos pertencer.
O modelo de desenvolvimento envolve ambiente e sociedade, envolve economia e ecologia, cultura e natureza. A menos que nos conformemos com as receitas tecnocráticas da «troika» e pensemos ver nessas medidas mais do que um aflitivamente necessário «acerto de contas» com resultados aliás bastante duvidosos.
Pouco disto esteve presente nas eleições, com evidente empobrecimento do debate político. Mesmo tendo ontem sido dia de escolhas políticas e também Dia Mundial do Ambiente. Ironia subtil do calendário!
Bernardino Guimarães
terça-feira, maio 24, 2011
MUSAS DA FONTINHA
Que musas inspiram um processo de reabilitação urbana que não implica edifícios nem construção e que vive desde há poucos meses no miolo de um quarteirão central do Porto? Sem esse sopro vivo de inspiração, ali na Fontinha, um dos pontos mais altos da cidade do Porto, com belas vistas escondidas pelo abandono e esquecimento, seria difícil imaginar a Quinta das Musas. E a poesia é concreta, trata-se de trabalho que devolve produtividade agrícola a quintais e hortas que ressurgem, dia a dia, trabalho voluntário de gente muito diversa— unida por um projecto que faz agricultura e promove comunidade.
Entre o Bonjardim (rua antiga e prestigiosa por onde se entra para a Quinta) e Santa Catarina existem, ocultas de quem passa, realidades que diríamos totalmente ausentes da cidade que vemos todos os dias. A área verde, no total dispõe de uns milhares de metros quadrados poupados ao betão.
Desde Janeiro, um conjunto de pessoas --que vai aumentando-- prepara os terrenos, retira silvas e entulho acumulado, esquadrinha lotes e semeia, e planta, e cuida, fazendo agricultura urbana que pode ter bela função lúdica e educativa, mas que vai para além disso: à sua pequena escala, é de «soberania e segurança alimentar» que se trata. Tópico essencial nestes dias de incerteza.
Dar vida útil e produtiva a uma parte dos «quarteirões verdes» que no seu interior albergam ainda solo fértil, biodiversidade, fontes de água, árvores, eis o que é também reconversão urbana e recuperação ambiental e social da Baixa.
Entre «mineralizar» e «vegetalizar», os animadores da Quinta das Musas, onde se destaca como pioneiro o engenheiro florestal Francisco Flórido, optaram pela segunda.
Os problemas sociais, que a crise e a recessão programada dos próximos anos apenas agravarão, pedem respostas ao nível local, imaginativas, integrativas, apelando à generosidade e ao talento das pessoas. Os moradores da Fontinha aderiram com entusiasmo a este ressurgimento, a esta nova animação de um sítio que parecia condenado ao marasmo e à decadência.
Mudar a cidade, repovoar e dar vida à Baixa, atrair gente e actividade, não pode passar apenas por operações urbanísticas «pesadas» nem por um excesso de culto da fachada antiga, mas impõe abordagens variadas. Nem a «movida» portuense pode ser redutora e passageira: fixar actividades e configurar relações de comunidade, de vizinhança— que aliás sempre caracterizaram o Porto e os seus bairros e ruas populares--é tarefa morosa, mas possível.
Quem quiser ver a cidade a transformar-se para melhor, em benefício da saúde e do bem estar de quem lá trabalha e graciosamente ajuda, ou «adopta» um lote para aí cultivar os seus frescos, as flores ou as ervas aromáticas, deve observar esta Quinta da Musas de tão agradável estro criativo.
Durante demasiado tempo ficaram para trás, valores que não deveriam ter sido esquecidos. A importância da terra está entre esses valores. As couves, os tomates, as frutas de cores chamativas, não saem de máquinas embaladoras ou do bojo de algum servidor electrónico: verdade elementar que importa difundir, já que a artificialização da vida traz consigo uma insinuante alienação das coisas mais óbvias.
Portanto: cidadania, participação, voluntariado, espírito de cooperação, regeneração urbana, demonstração pelo exemplo. É assim que se reduz a espessura do monte de «convenções» e de «impossíveis» que nos impedem de criar coisas novas e de mudar a vida.
Que as musas sejam sempre favoráveis aos criadores de jardins e oficiantes de hortas no centro da cidade. Que o seu exemplo floresça como as rosas de Maio e as ideias poderosas cujo tempo chegou!
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada em Jornal de Notícias, 24/5/2011)
Entre o Bonjardim (rua antiga e prestigiosa por onde se entra para a Quinta) e Santa Catarina existem, ocultas de quem passa, realidades que diríamos totalmente ausentes da cidade que vemos todos os dias. A área verde, no total dispõe de uns milhares de metros quadrados poupados ao betão.
Desde Janeiro, um conjunto de pessoas --que vai aumentando-- prepara os terrenos, retira silvas e entulho acumulado, esquadrinha lotes e semeia, e planta, e cuida, fazendo agricultura urbana que pode ter bela função lúdica e educativa, mas que vai para além disso: à sua pequena escala, é de «soberania e segurança alimentar» que se trata. Tópico essencial nestes dias de incerteza.
Dar vida útil e produtiva a uma parte dos «quarteirões verdes» que no seu interior albergam ainda solo fértil, biodiversidade, fontes de água, árvores, eis o que é também reconversão urbana e recuperação ambiental e social da Baixa.
Entre «mineralizar» e «vegetalizar», os animadores da Quinta das Musas, onde se destaca como pioneiro o engenheiro florestal Francisco Flórido, optaram pela segunda.
Os problemas sociais, que a crise e a recessão programada dos próximos anos apenas agravarão, pedem respostas ao nível local, imaginativas, integrativas, apelando à generosidade e ao talento das pessoas. Os moradores da Fontinha aderiram com entusiasmo a este ressurgimento, a esta nova animação de um sítio que parecia condenado ao marasmo e à decadência.
Mudar a cidade, repovoar e dar vida à Baixa, atrair gente e actividade, não pode passar apenas por operações urbanísticas «pesadas» nem por um excesso de culto da fachada antiga, mas impõe abordagens variadas. Nem a «movida» portuense pode ser redutora e passageira: fixar actividades e configurar relações de comunidade, de vizinhança— que aliás sempre caracterizaram o Porto e os seus bairros e ruas populares--é tarefa morosa, mas possível.
Quem quiser ver a cidade a transformar-se para melhor, em benefício da saúde e do bem estar de quem lá trabalha e graciosamente ajuda, ou «adopta» um lote para aí cultivar os seus frescos, as flores ou as ervas aromáticas, deve observar esta Quinta da Musas de tão agradável estro criativo.
Durante demasiado tempo ficaram para trás, valores que não deveriam ter sido esquecidos. A importância da terra está entre esses valores. As couves, os tomates, as frutas de cores chamativas, não saem de máquinas embaladoras ou do bojo de algum servidor electrónico: verdade elementar que importa difundir, já que a artificialização da vida traz consigo uma insinuante alienação das coisas mais óbvias.
Portanto: cidadania, participação, voluntariado, espírito de cooperação, regeneração urbana, demonstração pelo exemplo. É assim que se reduz a espessura do monte de «convenções» e de «impossíveis» que nos impedem de criar coisas novas e de mudar a vida.
Que as musas sejam sempre favoráveis aos criadores de jardins e oficiantes de hortas no centro da cidade. Que o seu exemplo floresça como as rosas de Maio e as ideias poderosas cujo tempo chegou!
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada em Jornal de Notícias, 24/5/2011)
E VINHA VINDO A NOITE ENTRE OS PINHEIROS
E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p'ra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonh......ar. As sombras ao vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.
A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.
Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos distantes - e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.
A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar.
Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão.
Veio a manha e foi como de dia: não se via nada.
Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1
A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.
Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos distantes - e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.
A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar.
Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão.
Veio a manha e foi como de dia: não se via nada.
Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1
Etiquetas:
José de Almada-Negreiros,
Orfeu
terça-feira, maio 10, 2011
RUÍDO
Fala-se pouco de poluição sonora. Será preciso falar alto— para que nos ouçam sobre tão esquecido assunto. Precisa alguém de saber do que se trata, ruído, barulho em excesso, contaminação acústica ou tão simplesmente agressão continuada aos nossos tímpanos? Basta conhecer e frequentar a cidade do Porto. O antigo burgo parece tomado por euforia acústica grave, se percorremos uma das suas ruas mais movimentadas. À semana é pior do que aos fins-de-semana. Os dias úteis são dias de barulho. O cidadão não tem direito ao silêncio, de onde vem toda a concentração, todo o pensamento, toda a música, para contrastar este universo dos sons.
Conhecido todos os perigos e malefícios do ruído em altas doses, para a saúde física e mental dos humanos, diremos que o barulho é um dos sintomas de uma cidade que se desumaniza, que não comunica, que agride e hostiliza os mais fracos e vulneráveis. A brutalidade do dia-a-dia pode também ser medida em decibéis, o ambiente urbano torna-se agreste e duro— quando a cidade deveria ser pátria dos que a habitam ou nela trabalham ou visitam, não um poço de perigos e de disfunções.
Claro que o tráfego automóvel, excessivo ele também e dominante, representa um dos factores mais importantes na geração de ruído. Mas ele há outros factores e bem pesados um pouco por toda a parte. Fenómenos localizados podem agravar o cenário sonoro: casas de diversão nocturna sem os meios necessários de isolamento, publicidade com recurso a meios sonoros, oficinas, enfim, toda uma constelação de pequenos emissores. Não é raro entrar-se num café ou restaurante e ser-se invadido pela sensação desconfortável de agressão aos ouvidos: a TV com volume excessivo, as máquinas debitando decibéis enquanto saem meias de leite ou cafés, até a manipulação de louça demasiado perto dos utentes.
Moídos pelo ruído, nervos em franja, acicatamos anda mais o massacre: é a buzina fora de hora e de lei por tudo e por nada, é a motorizada que atravessa uma avenida e atormenta milhares de pessoas no seu irritante percurso, enfim, o que não falta são exemplos do quotidiano infeliz.
Para tudo isto existe legislação suficiente— falta fazê-la cumprir. Os municípios não podem alhear-se deste drama, tanto mais que as «Cartas de Ruído» devem integrar os Planos Directores Municipais.
Um estudo recente revelou que «os níveis de ruído nas principais avenidas e eixos rodoviários das grandes cidades são «significativamente elevados» e «acima do que seria recomendável», com Lisboa e Porto a encabeçarem a lista negra das cidades mais ruidosas, com resultados «substancialmente perigosos».
Mais: «Os níveis estipulados como aceitáveis nas zonas urbanas em período diurno varia entre os 63 e 65 decibéis, mas Lisboa e Porto registaram valores superiores a 70 decibéis, com a zona dos Aliados, no Porto, a atingir os 76 decibéis».
«Nas principais avenidas e junto aos principais eixos das grandes cidades os valores são significativamente elevados, acima do que seria recomendável do ponto de vista de saúde e acima dos valores regulamentados» diz a Sociedade Portuguesa de Acústica.
Um problema ambiental que urge enfrentar com determinação.
Enquanto isso não acontece, vamos ficando surdos e nevróticos, incapazes de pensar e de viver em plenitude.
Os pássaros das cidades já se tentam adaptar: apurou-se em várias pesquisas que «os pássaros da área urbana dedicam mais tempo a cantar para compensar o ruído ambiente, prestando menos atenção a outras tarefas como a defesa ante possíveis predadores. E cantam muito mais alto do que os seus parentes rurais».
Nem as aves escapam!
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 10/5/2011)
Conhecido todos os perigos e malefícios do ruído em altas doses, para a saúde física e mental dos humanos, diremos que o barulho é um dos sintomas de uma cidade que se desumaniza, que não comunica, que agride e hostiliza os mais fracos e vulneráveis. A brutalidade do dia-a-dia pode também ser medida em decibéis, o ambiente urbano torna-se agreste e duro— quando a cidade deveria ser pátria dos que a habitam ou nela trabalham ou visitam, não um poço de perigos e de disfunções.
Claro que o tráfego automóvel, excessivo ele também e dominante, representa um dos factores mais importantes na geração de ruído. Mas ele há outros factores e bem pesados um pouco por toda a parte. Fenómenos localizados podem agravar o cenário sonoro: casas de diversão nocturna sem os meios necessários de isolamento, publicidade com recurso a meios sonoros, oficinas, enfim, toda uma constelação de pequenos emissores. Não é raro entrar-se num café ou restaurante e ser-se invadido pela sensação desconfortável de agressão aos ouvidos: a TV com volume excessivo, as máquinas debitando decibéis enquanto saem meias de leite ou cafés, até a manipulação de louça demasiado perto dos utentes.
Moídos pelo ruído, nervos em franja, acicatamos anda mais o massacre: é a buzina fora de hora e de lei por tudo e por nada, é a motorizada que atravessa uma avenida e atormenta milhares de pessoas no seu irritante percurso, enfim, o que não falta são exemplos do quotidiano infeliz.
Para tudo isto existe legislação suficiente— falta fazê-la cumprir. Os municípios não podem alhear-se deste drama, tanto mais que as «Cartas de Ruído» devem integrar os Planos Directores Municipais.
Um estudo recente revelou que «os níveis de ruído nas principais avenidas e eixos rodoviários das grandes cidades são «significativamente elevados» e «acima do que seria recomendável», com Lisboa e Porto a encabeçarem a lista negra das cidades mais ruidosas, com resultados «substancialmente perigosos».
Mais: «Os níveis estipulados como aceitáveis nas zonas urbanas em período diurno varia entre os 63 e 65 decibéis, mas Lisboa e Porto registaram valores superiores a 70 decibéis, com a zona dos Aliados, no Porto, a atingir os 76 decibéis».
«Nas principais avenidas e junto aos principais eixos das grandes cidades os valores são significativamente elevados, acima do que seria recomendável do ponto de vista de saúde e acima dos valores regulamentados» diz a Sociedade Portuguesa de Acústica.
Um problema ambiental que urge enfrentar com determinação.
Enquanto isso não acontece, vamos ficando surdos e nevróticos, incapazes de pensar e de viver em plenitude.
Os pássaros das cidades já se tentam adaptar: apurou-se em várias pesquisas que «os pássaros da área urbana dedicam mais tempo a cantar para compensar o ruído ambiente, prestando menos atenção a outras tarefas como a defesa ante possíveis predadores. E cantam muito mais alto do que os seus parentes rurais».
Nem as aves escapam!
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada no Jornal de Notícias, 10/5/2011)
POR VEZES CADA OBJECTO SE ILUMINA
Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
...como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo
António Ramos Rosa
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
...como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo
António Ramos Rosa
terça-feira, maio 03, 2011
ELECTROCARDIOGRAMA
Um postal de férias, uma carta de amor ou um electrocardiograma; tudo são palavras que se nos dirigem, iguais no destino de palavras. Amáveis, doces, moles, flexíveis, e todas são avisos. Tocam-nos ou não, não nos tocam, mas sempre acabam na gaveta daquele móvel antigo que era da tia, na dobra do quarto que dá para a janela.
Atravessam-nos as palavras dos outros, e acabam no rol das saudades que evitamos.
Um coração doente tem resposta para dar? Coração é coisa inclassificável. O mar também. Quantos refluxos quantas marés quantos encantamentos dirigem a orquestra do sangue nas artérias, vida, mas vida resistente porque é vida, participante no grande cenário das sombras e da claridade. Coração com andamento: moderato allegro, cantabile, rápido, contido., aberto, luminoso, taciturno. É um jogo. Uma canção.
O coração canta, não teme nada, não deixa nada por fazer, acontece em modo contínuo, varia as tonalidades e os ritmos— como poderia ser de outra forma?
Não há corações doentes— só corações que acabam de cantar, lentamente, suavemente, descompassando notas, apaixonados, desencantados, cheios de esperança ou vendo de longe o raiar da última luz.
Mistérios do coração e das palavras!
Atravessam-nos as palavras dos outros, e acabam no rol das saudades que evitamos.
Um coração doente tem resposta para dar? Coração é coisa inclassificável. O mar também. Quantos refluxos quantas marés quantos encantamentos dirigem a orquestra do sangue nas artérias, vida, mas vida resistente porque é vida, participante no grande cenário das sombras e da claridade. Coração com andamento: moderato allegro, cantabile, rápido, contido., aberto, luminoso, taciturno. É um jogo. Uma canção.
O coração canta, não teme nada, não deixa nada por fazer, acontece em modo contínuo, varia as tonalidades e os ritmos— como poderia ser de outra forma?
Não há corações doentes— só corações que acabam de cantar, lentamente, suavemente, descompassando notas, apaixonados, desencantados, cheios de esperança ou vendo de longe o raiar da última luz.
Mistérios do coração e das palavras!
Etiquetas:
Coração,
mistério da palavra
Subscrever:
Mensagens (Atom)